Populismo

Emergente no século XIX como um movimento de agricultores na Rússia e nos Estados Unidos e relacionado com fenómenos muito distintos (v.g. na Europa com a emigração, na América Latina com o clientelismo) o populismo tem crescido na União Europeia (v.g.. o Freiheitliche Partei Österreichs, FPÖ, na Áustria; Le Front National (FN) na França; Movimento 5 Stelle (M5S) e a Lega Nord (LN) na Itália; United Kingdom Independence Party (UKIP) na Grã-Bretanha; Alternative for Deutschland (AfD) na Alemanha; Vlaams Blok na Bélgica; Dansk Folkeparti na Dinamarca e os Verdadeiros Finlandeses na Finlândia)). Tem-se disseminado também a nível global (v.g. o One Nation, na Austrália; New Zeland First, na Nova Zelândia; Índia Contra a Corrupção, na Índia; o Partido da Justiça e Desenvolvimento na Turquia).

Apesar da controvérsia sobre as causas desse crescimento, a percepção generalizada de ameaças à própria existência da sociedade, o desenvolvimento económico desfavorável (Taggart 2000; Weyland 2001), a corrupção sistemática e a incapacidade de resposta dos sistemas políticos aos problemas dos cidadãos, parecem constituir um terreno fértil para a emergência dos populismos. A mobilização cognitiva dos cidadãos informados que não aceitam o domínio natural das elites e criticam as irregularidades políticas, sobretudo através dos novos meios de comunicação online e das redes sociais, também tem sido apontada como uma causa do populismo. A substituição dos especialistas académicos pelo “homem da rua” na cobertura de problemas políticos importantes também está na origem do populismo (Mudde e Kaltwasser 2017).

Referido a um fenómeno político heterogéneo – os agentes populistas podem ser conservadores ou progressistas, religiosos ou seculares, de esquerda ou de direita – o seu conceito é bastante controverso (Kaltwasser et al. 2017). Com efeito, é usado para descrever movimentos políticos, partidos, ideologias e líderes em áreas geográficas distintas (v.g. América Latina, Europa, EUA), e em contextos ideológicos e históricos diferentes. Por exemplo, o populismo agrário na Rússia e EUA, no século XIX, ligado ao narodnichestvo ou o espírito do povo que levou os intelectuais russos na década de 1870 a deslocarem-se das cidades para o campo para incentivar os camponeses a revoltarem-se contra o regime czarista (Taggart 2000), distingue-se do populismo neofascista e racista no século XXI, associado políticas de mercado neoliberais e a uma agenda socialmente e politicamente autoritária e xenófoba (Kitschelt 1995).

É também um conceito usado de um modo muito amplo numa variedade de disciplinas académicas, tais como sociologia (Kemmers, Waal e Aupers 2015), direito (Tóth 2012), ciência política (Taggart 2000, 2002), psicologia social (Aslanidis 2018) e economia (Dornbusch e Edwards 1992).

Na filosofia política é entendido como uma ideologia (Mudde e Kaltwasser 2017) ou uma estratégia retórica (Canovan 1984). A perspectiva ideológica entende-o não apenas como um movimento, mas como um discurso e uma ideologia ou mundovisão de baixa densidade. De facto, as crenças, valores, atitudes e ideias populistas estão associadas a tradições ideológicas muito diferentes, tais como o conservadorismo, liberalismo e americanismo (Mudde 2013; Mudde e Kaltwasser 2017). Grosso modo, a perspectiva ideológica sublinha a divisão da sociedade em dois campos antagónicos, o povo homogéneo e puro contra a elite corrupta (Mudde 2013; Mudde e Kaltwasser 2017; Müller 2016). O antagonismo entre o povo indiferenciado e a elite política, seja qual for o seu conteúdo – a alta finança e as grandes empresas (Canovan 1999) – constitui o fulcro da definição ideológica do populismo.

Como estratégia retórica o populismo é um discurso maniqueísta, usado estrategicamente pela direita e esquerda, os liberais, conservadores e marxistas, e que atribui uma dimensão moral binária aos conflitos políticos (Hawkins 2010; Laclau 2005). A perspectiva discursiva sublinha a distinção entre “nós” e “eles”, resultante de processos de identificação em função dos quais grupos sociais específicos se definem como “o povo” (nós), opondo-se aos “outros” opressivos (eles).

O populismo é ainda definido na teoria política como uma forma peculiar de organização política em que a identidade dos líderes políticos e a sua relação com outros atores políticos tem um valor heurístico assinalável. Por exemplo, os partidos populistas são caracterizados por estruturas organizacionais lideradas por um forte líder carismático (Taggart 2000) que baseia o seu poder em relações diretas, não mediadas e institucionalizadas com seguidores desorganizados (Roberts 2006; Weyland 2001). Mais precisamente, os líderes populistas sustentam a sua influência através de apelos pessoais, ideologicamente flexíveis, vendo quaisquer instituições fora de seu controle como obstáculos a serem contornados ou superados.

Imaginação moralística da política

A distinção entre a elite e o povo tem sido privilegiadamente entendida como uma distinção moral. O populismo consiste na imaginação moralística da política ou uma forma moralista de anti pluralismo (Müller 2014, 2016). Imaginação, porque a ideia de um povo moralmente puro é uma ficção, ou a construção de um mundo ideal (Taggart 2002) dissociadas dos procedimentos democráticos em vigor. Moralista, porque as reivindicações populistas são indesmentíveis, i.e. não são empiricamente refutáveis e os conflitos políticos têm um sentido moral (Müller 2016)). Anti-pluralística porque ao povo homogéneo e puro subjaz a negação da existência de uma ampla variedade de grupos sociais com ideias e interesses diferentes e parcialmente justapostos (Canovan 1984, 2004, 2008; Freeden 2016; Laclau 2005; Mudde 2013; Mudde e Kaltwasser 2017; Müller 2014, 2016).

Populismo e democracia

O facto de o conceito de povo ser um conceito nuclear tanto do populismo como na democracia implica uma relação intrínseca, ambígua e ambivalente do populismo com a democracia, em geral, e a democracia liberal, em particular. Essa ambiguidade resulta não apenas do populismo, enquanto tal, mas também do entendimento controverso da democracia. Por exemplo, definindo o regime político em função da regra de distribuição das magistraturas (atribuídas a um, poucos ou muitos) Aristóteles (2002) subsume o governo de muitos pelos dois tipos de regime: o constitucional, saudável, e o democrático, patológico. No primeiro caso, os muitos deliberam no interesse da totalidade diferenciada dos cidadãos da polis (ricos e pobres) e no segundo deliberam em função do interesse apenas dos cidadãos pobres. Conquanto não seja despicienda a designação da democracia como um regime dos pobres, a filosofia política de Aristóteles (2002) considera que a patologia do governo de muitos consiste na unilateralidade da legislação política. Como a transformação de uma parte do povo (ou dos cidadãos) é uma das características distintivas do populismo é possível entender o populismo como uma forma patológica de democracia (Mény e Surel 2000).

O populismo é também entendido como a ideologia da democracia (Canovan 2008). Como qualquer ideologia que reduz a complexidade da política a uma dogmática simplificadora, a ideologia democrática está repleta de temas populistas, tais como a oposição entre a soberania popular e o compromisso, a unidade popular contra a multiplicidade, a maioria contra as minorias, a transparência contra a complexidade processual. Porém, se a presença de temas populistas não permite identificar a democracia com o populismo, como ideologia da democracia o populismo não apenas compreende os insucessos da democracia como uma traição ao povo (Mény e Surel 2000; Taggart 2000), mas também mobiliza o descontentamento dos cidadãos sob a bandeira da restauração da política para o povo (Canovan 2008). Canovan atribui mesmo a origem do populismo ao paradoxo da democracia, i.e. ao facto de a democracia apelar à participação política de todos os cidadãos e estes nem sempre compreenderem o seu significado (Canovan 2002). Com efeito, quanto mais bem-sucedido for o projecto de inclusão e quanto mais dinâmica for a arena política tanto menos os votantes conseguem construir uma imagem da localização do poder. O processo de tomada de decisão torna-se, por conseguinte, mais opaco. Ao paradoxo da democracia acresce a dificuldade em conciliar as duas faces da democracia, a pragmática, respeitante às instituições democráticas (sistema multipartidário, eleições livres, grupos de pressão, lobbies), à redentora, relativa à promessa de um mundo melhor através da ação do povo soberano (Canovan 2002). Com efeito, se a promessa de um mundo melhor e mais justo não for mantida e se for acompanhada pelo deficiente conhecimento do funcionamento da democracia, o incumprimento das promessas é interpretado como uma traição ao povo e a política para o povo é restabelecida através da intervenção dos populistas (Canovan 2002).  

Também, apesar de alguns autores o compreenderem como um factor de erosão e corrupção, senão mesmo de destruição da democracia, em geral, e da democracia liberal, em particular (Mény e Surel 2000; Mudde 2013; Mudde e Kaltwasser 2017; Müller 2014, 2016), o populismo é também visto como uma força democratizadora, um indicador de saúde nos sistemas políticos representativos, ou mesmo um espelho da democracia. Como força moralizadora pretende dar voz a grupos que não se se sentem representados pelos poderes instituídos (Laclau 2005; Mudde e Kaltwasser 2017). Como indiciador de saúde chama a atenção para o mau funcionamento ocasional das democracias (Taggart 2000), fazendo com que as elites se tornem conscientes de que precisam levar a política às “pessoas” (Canovan 2002). Como espelho da democracia torna visíveis os problemas da democracia (Panizza 2005) e incentiva a mobilização dos sectores excluídos da sociedade para alterar o statuo quo (Laclau 2005). Neste caso, o populismo consubstancia a vitória da democracia radical.

Porém, o facto de os populistas dispensarem a participação política dos cidadãos e de distorcerem o processo democrático, através, por exemplo, do desenho de constituições partidárias e exclusivistas, parece tornar contraproducente o conceito de democracia populista, ou democracia iliberal quer esta seja compreendida como democracia directa, indirecta (e.g. representativa) ou radical (Müller 2014, 2016). Com efeito, conquanto os populistas pareçam agir segundo um mandato imperativo e não fiduciário a natureza pura a indiferenciada do povo representado reduz frequentemente a vontade popular à vontade pessoal e irrestrita do líder populista.

Populismo e soberania popular

O populismo remete em última instância para o conceito de soberania popular, em que a fonte legítima e última do poder político é o povo. Quando subsumido pela mundivisão populista, o poder do povo é ilimitado e no limite despótico (Mudde 2013; Mudde e Kaltwasser 2012). Segundo alguns pensadores o carácter despótico da soberania popular no populismo resulta da conceptualização do povo soberano na filosofia política de Rousseau (Mudde 2013; Mudde e Kaltwasser 2012). Contrariamente à vontade individualista, pluralista e representada de todos e referente à soma de interesses particulares, o poder soberano do povo corporiza-se na filosofia política de Rousseau numa vontade geral: a) colectiva, porque a alienação total das liberdades individuais através de um contrato social as transforma em um corpo coletivo; b) monista ou anti pluralista porque, como um corpo coletivo, todos os membros perseguem o mesmo fim; c) irrepresentável porque a representação política mina o poder coletivo do corpo político – para além de diminuir o poder político individual, em vez de salvaguardar o bem-estar coletivo, os representantes do povo usam o poder político de todos para promover seus interesses particulares. Subsumida pela vontade geral o poder soberano do povo não distingue governados de governantes: todos são simultaneamente governados e governantes (Rousseau 1762 [1964]).

Embora essa interpretação da vontade geral não seja consensual (Hampsher-Monk 1992), o carácter despótico-rousseauniano da vontade populista soberana expressa-se, por exemplo, nas estratégias do exercício do poder político, tais como i) na colonização ou ocupação do estado através do uso da lei pública para colocar os fiéis nos cargos que deveriam ser burocráticos e não partidários; ii) no clientelismo de massas, i.e. a troca de favores materiais e imateriais das elites pelo apoio das massas; iii) no legalismo discriminatório, i.e. a opinião de que para os amigos tudo, para os inimigos nada (Müller 2016).

O facto do neoliberal populismo desafia, todavia, a associação entre populismo e a concepção rousseauniana de soberania popular. Com efeito, se o neoliberal populismo extrai do populismo o conceito de povo, compreende-o como uma associação de indivíduos cujo contrato não os transforma num corpo coletivo em que todos os membros perseguem o mesmo fim. O membro do povo no neoliberal populismo é um indivíduo separado e isolado, que qual Robinson Crusoe, se limita a maximizar os seus fins exclusivamente privados.

Como combater o populismo

O combate à corrupção, o papel das instituições especializadas na protecção de direitos fundamentais e das instituições supranacionais e os meios de comunicação social desempenham um papel importante no combate aos populismos. O diálogo aberto com os líderes e apoiantes dos movimentos sociais e partidos populistas  pode limitar a sua influência política. Finalmente, ao proceder à clarificação conceptual do fenómeno populista a investigação filosófica também contribui para a eficácia desse combate. 

Bibliografia

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Outros artigos

Estado de Direito; Povo; Soberania


Como citar este artigo

Queiroz, R. “Populismo”. Dicionário de Filosofia Moral e Política (2019), 2.ª série, coord. António Marques e André Santos Campos. Lisboa: Instituto de Filosofia da Nova, URL: <http://www.dicionariofmp-ifilnova.pt/populismo>.


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DOI: http://doi.org/10.34619/h33m-r196


Publicado em: 25 de Julho de 2019


Regina Queiroz

FCSH, Universidade Nova de Lisboa

<queiroz.regina@gmail.com>