Representação

Dificilmente se encontrará ideia mais difícil de estudar, quanto mais de definir, do que a de representação. Com efeito, a representação testa os limites da imaginação humana, ao sugerir um estado de coisas em que presença e ausência não se excluem mutuamente.

Etimologicamente, a palavra deriva do latim repraesentatio, cuja panóplia de significados, ainda que ampla, não incluía inicialmente nem a noção de que seres humanos podiam representar outros seres humanos, falando e agindo em seu nome, nem a de que as instituições políticas podiam ser pensadas como instâncias de representação. No mundo romano, repraesentatio assumia um alcance sobretudo temporal, referente à relação do presente tanto com o passado como com o futuro. Assim, repraesentare podia ora remeter para uma evocação particularmente vívida do passado, de impacto retórico, ora assumir o significado económico de “pagar imediatamente”, acelerando-se assimo presente rumo ao futuro (Ker 2007: 341-42). Considerando esta peculiar semântica, talvez a palavra persona, significando máscara ou personagem em contexto dramático, revele uma maior afinidade com os usos posteriores do termo do que a romana repraesentatio que está na sua origem etimológica (Saward 2010: 5).

É na Idade Média, e tanto no latim como nas línguas vernaculares, que o uso do conceito de representação se expande por diversos contextos, do religioso ao legal, do estético ao político. A sua contiguidade com um conjunto de outras ideias (símbolo, imagem, retrato, ficção, personificação, autorização, etc.) torna as fronteiras turvas e é bem capaz de conduzir o estudioso ao desespero, levando-o a desistir da tentativa de chegar a uma definição minimamente precisa. Segundo Hanna Fenichel Pitkin, porém, tal conclusão é manifestamente exagerada. Em The Concept of Representation, ainda hoje a obra de referência para quem estuda o problema em sede de teoria política, a autora propõe uma definição geral que crê capaz de abarcar os mais variados usos do conceito: representação significa tornar presente, nalgum sentido que não o literal, algo que não está de facto presente (Pitkin 1967: 8-9). A dualidade presença-ausência parece, pois, estar alojada no próprio âmago do conceito.

A forte influência do estudo de Pitkin sobre a generalidade da literatura subsequente, sobretudo no contexto anglo-americano, foi simultaneamente fecunda e castradora, como acontece com boa parte das obras que, pelos seus méritos intrínsecos e pelas contingências da sua recepção, se elevam a pólo orientador de todo um campo de reflexão. No que resta deste artigo, propomo-nos explorar tanto os aspectos que a perspectiva de Pitkin ajudou a iluminar, como os que acabou por ocultar – e que alguma literatura recente procura reconsiderar.

Para além da possibilidade de subsunção dos mais variados usos a uma definição geral, ainda que paradoxal, o estudo da filósofa norte-americana assenta em dois pressupostos distintos: um de natureza metodológica e outro normativo. Por um lado, inspirada pela filosofia da linguagem de J. L. Austin, a autora crê que uma análise exaustiva dos vários usos da palavra, nos seus contextos específicos, permite atingir uma leitura completa e detalhada dos seus significados (Pitkin 1967: 10-11). As mais díspares teorias da representação política desenvolvidas ao longo da história seriam, assim, como que peças de um vasto puzzle que o esforço analítico pode reconstruir. Por outro lado, de forma implícita, mas que se torna clara desde cedo, Pitkin assume que, através dessa reconstrução, se pode chegar a um melhor entendimento do que deva ser a representação política, extraindo resultados normativos da análise linguístico-filosófica. Nesse sentido, a sua obra divide-se em dois grandes blocos. No primeiro, uma análise fina, atenta a múltiplos ângulos através dos quais se pode abordar o conceito, distingue vários modos de “ver” o fenómeno da representação política. No segundo, um deles é desenvolvido como ideal normativo.

A taxonomia elaborada ao longo da primeira parte do livro chama a atenção para os diferentes tipos de relação entre representante e representado que subjazem a diferentes concepções. Para as chamadas “visões formalistas”, que a autora faz remontar ao célebre capítulo XVI do Leviatã, de Thomas Hobbes, o problema remete para os mecanismos que autorizamo representante a agir em nome do representado, bem como para o âmbito específico dessa autorização. Na ficção contratualista hobbesiana, o escopo da autorização era larguíssimo e o representado surgia desarmado ante o soberano, após autorizar a representação. Na prática democrática moderna, a relação é substancialmente menos desequilibrada, e o mecanismo específico de autorização – a eleição – pode ser pensado simultaneamente como forma de responsabilização dos representantes perante os representados. Em todo o caso, a insuficiência normativa desta perspectiva é evidente: dela não se extrai qualquer pista para um julgamento da acção de quem representa, qualquer critério que permita distinguir um “bom” de um “mau” representante (Pitkin 1967: 39).

Olhando para além do aspecto formal, a autora distingue em seguida as concepções de representação descritiva e representação simbólica. A primeira encontra a sua expressão paradigmática, em teoria política, entre os defensores do princípio da representação proporcional, na clássica exigência de que, para ser verdadeiramente representativa, uma assembleia legislativa deve constituir retrato fidedigno, em ponto pequeno, da nação ou do povo como um todo. De acordo com esta perspectiva, o representante deve assemelhar-se ao representado – tipicamente, como queria John Stuart Mill, em termos de preferência político-ideológica, mas as características relevantes a espelhar podem ser outras (género, etnia, religião, etc.). No caso da representação simbólica, pelo contrário, não existe semelhança entre representante e representado. Aí, a conexão é fruto da crença do segundo no primeiro, e o cerne do problema desloca-se para as técnicas de liderança capazes de a promover e sustentar. Ambas as perspectivas ultrapassam o horizonte estritamente formal do problema, mas as actividades de retratar e simbolizar, para as quais remetem, afastam-se do sentido de representar como “agir por” que, para uma leitura eminentemente política do conceito, se afigura imprescindível (Pitkin 1967: 111).

O puzzle completa-se, portanto, com a “visão” da representação como acção substantiva, a qual se revela, aos olhos da autora, a melhor maneira de pensar a representação política. Nesta acepção, o representado é concebido como presente na própria acção, não nos arranjos formais que a enquadram ou nas características do representante; representar significa, assim, agir no superior interesse dos representados. Como determinar esse superior interesse, e quem o deve fazer, é evidentemente uma questão controversa, que remete para a clássica oposição entre mandato imperativo e mandato livre. Revendo a extensa literatura que alimenta esse debate, com especial destaque para Edmund Burke e para os utilitaristas britânicos, Pitkin chega à proverbial conclusão de que a virtude está algures no meio: o representante tem de agir autonomamente, e não como instrumento dos representados, mas tão-pouco pode ignorar ostensiva e recorrentemente os desejos expressos destes (Pitkin 1967: 209).

A influência de The Concept of Representation deve-se mais ao horizonte analítico estendido na sua primeira parte do que às conclusões normativas a partir dele extraídas. Sobretudo na ciência política, a obra inspirou a construção de tipologias cada vez mais complexas para o estudo empírico da representação (Mansbridge 2003). Por outro lado, mesmo aqueles autores que procuraram reconsiderar a importância das leituras do fenómeno menos relevadas por Pitkin, não deixaram de tomar a sua obra como ponto de partida. Sublinhem-se, a este respeito, os interessantes desenvolvimentos em torno da ideia de representação descritiva formulados em resposta aos desafios das sociedades multiculturais e da igualdade de género (Philips 1995; Young 2000). Mas se é certo que a obra de Pitkin estimulou novas e fecundas linhas de reflexão, não é menos verdade que obscureceu dimensões relevantes do problema.

De entre elas, destaco em primeiro lugar a relação entre representação e democracia, conceitos que Pitkin, ainda que bem ciente da sua distinta proveniência, acabava por equiparar. Voltando à questão quatro décadas depois, a autora não só reconhece a estreiteza dessa equiparação, como enfatiza a necessidade teórica de a problematizar. Numa passagem reveladora, sugere mesmo que os três séculos de história do governo representativo, apesar de todos os esforços de democratização, acabam por dar razão a Jean-Jacques Rousseau, autor ao qual pouca atenção dedicara no seu estudo de 1967: a representação, longe de servir a democracia, suplanta-a; os representantes agem não pelo povo, mas em vez do povo (Pitkin 2004: 339). Para Rousseau, a soberania era irrepresentável e uma comunidade livre incompatível com a existência de representantes do povo. Ademais, na prosa do genebrino deparamo-nos com a observação de que a representação era uma (“degradante”) prática feudal, desconhecida dos antigos e irreconciliável com as ideias políticas destes (Rousseau 1762: 78-80). À expressão “democracia representativa” subjaz, pois, uma ambivalente combinação entre Atenas e a Baixa Idade Média, cuja tensão claramente não se deixa dissolver pelo apuramento das técnicas eleitorais. Em certo medida, esse estranho casamento amplifica a dualidade presença-ausência inscrita no próprio conceito de representação.

Perante este problema, podemos distinguir três abordagens. 1. Declarar, no espírito de Rousseau, a democracia uma impossibilidade a partir do momento em que o horizonte político extravase a interacção face-a-face, presencial de uma pequena comunidade – denunciando, portanto, a moderna democracia representativa como uma fraude. 2. Reclamar a necessidade de experiências participativas de tipo ‘ateniense’ a nível local, para que a democracia representativa nacional não degenere, devido à passividade e desorientação dos cidadãos, em oligarquia (Pitkin 2004: 340-41). 3. Sublinhar, em sentido inverso, as virtualidades da ideia de representação para a prática democrática moderna, destacando os créditos firmados da representação parlamentar na gestão de conflitos políticos potencialmente letais e na criação de compromissos dificilmente imagináveis (Ankersmit 2002: 91 e ss.). Seja como for, importa ter presente a inexistência de uma conexão necessária entre democracia e representação, pelo que a relação entre ambas, em vez de irreflectidamente assumida, deve ser pensada como intrinsecamente problemática (Aurélio 2009: 12).

Por fim, um outro aspecto do estudo clássico de Hanna Pitkin que exige reconsideração é a sua insensibilidade para o que poderíamos designar a dimensão constitutiva da representação política. Apesar da ampla tela construída pela autora, que como vimos agrega diferentes perspectivas do fenómeno, é lícito afirmar que ela padece de um foco excessivo, se não mesmo exclusivo, no representante, assumindo a identidade e permanência do representado como dadas. Para Pitkin, o cerne do problema parece consistir em saber o que faz de alguém um representante. Com efeito, os “tipos” por ela construídos distinguem-se justamente por fornecerem respostas diversas a essa questão, que, contudo, está longe de esgotar o problema (Saward 2010: 10).

A outra face, cuja dinâmica a abordagem de Pitkin deixa na penumbra, é a da construção do representado. Este, em certo sentido, não existe antes de ser constituído pelo próprio processo de representação política. Com efeito, o que deve ser representado não é um dado óbvio, mas algo em si mesmo sujeito a permanente contestação e em constante mutação. Ignorar a natureza fluída e fugidia do representado conduz facilmente ao acantonamento da reflexão sobre a representação política nos modos territoriais e eleitorais herdados do passado. Não colocando em causa a sua importância, parece evidente que os desafios globais do mundo contemporâneo – pensemos, por todas, na questão do ambiente – requerem uma teoria da representação liberta desses espartilhos.

Bibliografia

Ankersmit, F. R. (2002), Political Representation, Stanford University Press, Stanford.

Aurélio, D. P. (2009), “O que representam os representantes do povo”, in D. P. Aurélio (coord.), Representação Política. Textos Clássicos, Livros Horizonte, Lisboa, pp. 9-51.

Ker, J. (2007), “Roman Repraesentatio”, American Journal of Philology 128 (3), pp. 341-365.

Mansbridge, J. (2003), “Rethinking Representation”, American Political Science Review 97 (4), pp. 515-528.

Phillips, A. (1995), The Politics of Presence, Oxford University Press, Oxford.

Pitkin, H. F. (1967), The Concept of Representation, University of California Press, Berkeley/Los Angeles.

Pitkin, H. F. (2004), “Representation and Democracy: Uneasy Alliance”, Scandinavian Political Studies 27 (3), pp. 335-342.

Rousseau, J.-J. (1762), Du Contrat Social, Union Générale d’Éditions, Paris (1963).

Saward, M. (2010), The Representative Claim, Oxford University Press, Oxford.

Young, I. M. (2000), Inclusion and Democracy, Oxford University Press, Oxford.


Outros artigos

Constituição; Democracia; Estado; Soberania


Como citar este artigo

Magalhães, P. T. “Representação”. Dicionário de Filosofia Moral e Política (2018), 2.ª série, coord. António Marques e André Santos Campos. Lisboa: Instituto de Filosofia da Nova, URL: <http://www.dicionariofmp-ifilnova.pt/representacao>.


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DOI: http://doi.org/10.34619/895n-rr05


Publicado em: 9 de Setembro de 2018


Pedro T. Magalhães

University of Helsinki

<pmagalhaes_15@hotmail.com>