mercado

Mercado é a palavra que traduz a situação em que ocorrem trocas de forma voluntária. O ato de trocar é inevitável e pode ser percebido no mercado. Toda a ação no mercado implica uma escolha. Ao trocar, escolhemos oferecer aquilo que tem, naquele momento, menos valor para nós, na tentativa de obter aqueloutro que nos parece ter mais valor. A troca ocorre apenas porque os envolvidos percecionam o valor dos elementos trocados de forma diferente. Se todos tivéssemos a certeza sobre o verdadeiro valor daquilo que nos rodeia, as mesmas propensões, e obtivéssemos a mesma satisfação das mesmas coisas, não haveria qualquer troca, logo, não haveria mercado. O mercado decorre não só da diferenciação entre preferências, gostos e fins, mas também das diferentes perceções acerca da valorização presente e futura dos bens. Enquanto processador de informação, o mercado acaba por ser uma forma de coordenar e sinalizar os nossos esforços e prazeres. As forças da concorrência no mercado livre têm promovido inovações e descobertas que facilitam e melhoram a vida de todas as pessoas. Mas o mercado também pode ter dimensões morais, dado que estimula a nossa capacidade de nos posicionarmos no lugar dos outros e de entendermos o que sentem.

O mercado é toda a situação que permita a realização de trocas com impacto sobre quem as realiza. O seu princípio está nas necessidades que temos e no desejo de alcançar bem-estar. Podemos associar ao mercado um conjunto de estímulos e de sinais que formam um aparato geral que revela, muitas vezes através de preços, de forma condensada e imediata, as relações de bem-estar existentes ou potenciais.

A noção de mercado é de difícil descrição. Atingir um acordo académico sobre aquilo que é o mercado poderá ser ainda mais desafiante. Não procurarei contribuir por isso para uma ideia de mercado inteiramente neutra ou imparcial. Esta leitura de quem se debruçou sobre o tema pode ser apenas uma espécie de proposta preliminar de análise. Vou deixar abaixo algumas das discussões que o conceito tem motivado. 

A ausência de mercado é mais fácil de perceber do que o mercado. No conjunto de textos que foram descobertos em nome de Adam Smith, escritos provavelmente por um dos seus alunos em 1762, editado com o título Lições sobre Jurisprudência, consta que Smith terá dito que, na ausência de mercado, “[o] Homem é como um náufrago no meio do oceano” (Smith 1982: vi.45). Estamos à deriva das pressões das nossas vontades voláteis, que gostaríamos de ver satisfeitas. Precisamos constantemente de uma imensidão de bens, produtos e serviços a que vamos chamando necessidades. Apenas conseguiremos sair de situações extremas com o trabalho articulado de muitas pessoas que nos ajudem.

O mercado existe porque a Natureza não nos fornece de forma espontânea as quantidades suficientes daquilo de que precisamos. Esta foi a origem da agricultura. A passagem para a industrialização é permitida quando a agricultura atinge um grau de eficiência que liberta pessoas para um trabalho com valor mais acrescentado, fazendo bens transformados, considerados menos necessários. É também a melhoria da técnica industrial que nos levou à era dos serviços económicos e às atividades de lazer.

Segundo a tradição da escola de pensamento clássica da economia, não conseguiríamos viver tempo algum em isolamento. Viver, sem essa constante assistência de milhares de milhões que sem se conhecerem trabalham, optam, escolhem, até parecendo que se coordenam, sem que alguém os esteja a coordenar, e que gerou um aumento geral da produção de bens sem precedentes na história da humanidade, seria impossível. Basta olhar a série longa de estatística que representa o produto mundial ou rendimento por pessoa médio para vermos o impacto do alargamento do mercado proporcionado pela industrialização, e o consequente crescimento económico que se iniciou no final do século XVIII e aumentou exponencialmente no século XIX.

Várias teses apontam como justificação deste crescimento razões institucionais, como as melhorias das instituições políticas através do constitucionalismo, incluindo a separação de poderes, a ideia de lei igual para todos e, mais tarde, a representação e a democracia. Decerto a mistura de muitos indicadores que se acompanham uns aos outros dificultam a análise. Mas que os avanços materiais e sociais encontram pontos concomitantes associados à expansão e internacionalização do mercado livre, é uma questão empírica confirmada por muitos dados de informação disponíveis nas várias organizações internacionais. Países com economias mais abertas, em média, tendem a ser mais ricos e até mais democráticos.

Origens: troca e voluntarismo

O mercado emerge no milésimo de segundo em que duas partes encontram uma forma de realizar trocas. Quando se dá a troca, uma pessoa disponibiliza-se a ficar sem algo que na sua sensibilidade vale menos do que aquilo que irá obter. Os dois lados da troca ganham. Todas as trocas, se forem livres e voluntárias, aumentam o bem-estar geral.

As ideias de valor relacionam-se com as possibilidades reais ou imaginárias que os objetos da troca significam, tendo em consideração os fins de cada pessoa que troca. A troca apenas acontece porque esses fins, sendo diferentes, inclinam quem troca a uma valorização diferenciada dos objetos trocados. Essa diferença consiste num desacordo ligeiro, que tende a ser erodido à medida que se alargam e multiplicam as trocas. Mas é esse ligeiro desacordo que motiva a troca inicialmente. Esse desacordo, sendo maior, pode inibir ou bloquear a troca. Esta situação tende a acontecer quando há menos intervenientes no mercado.

Todas as permutas realizadas voluntariamente deixam invariavelmente ambos os lados mais satisfeitos. Daqui resulta que ambos os lados da transação estarão, em termos relativos, mais ricos do que anteriormente. Se assim não fosse, não teriam entrado no processo de troca. Ora, assim sendo, o mercado, só por si e em si, gera riqueza. Este acréscimo de valor geral representa a oportunidade que a troca realizou. O voluntarismo é o traço fundamental do mercado. Contrasta com o mercado o uso da força.

Nas tentativas de o definir, têm sido vincadas as dimensões institucionais ou mecânicas desta situação, que nem sempre contribuem para o seu entendimento, porque ao sistematizar o arranjo que o mercado proporciona dão-lhe um pendor esquemático ou manipulável, que o mercado, especialmente em concorrência aberta, não tem. Como sugeriu Ludwig von Mises, o mercado, numa palavra, é um processo, não é “um lugar” ou “uma coisa”. O mercado não é, por isso, estático. O mercado não é um mecanismo articulado, nem sequer uma arena ou recinto onde se realizam trocas. A praça no centro da cidade é um mercado, mas que pertence ao mercado em sentido mais lato.

Daí termos de colocar algumas dúvidas nas tentativas de formalização teórica do mercado e das suas operações. Principalmente nos modelos que tentam controlar mais variáveis ou prever movimentos com indicadores agregados. Estes modelos mais ambiciosos tentam revelar como uma variável económica pode estar associada a uma outra variável, mas têm em conta apenas indicadores do passado. É muito difícil conseguir prever como essas variáveis se comportarão no mercado a cada instante. Depois dos fenómenos acontecerem, é que aparecem as teorias. Sendo que este efeito epistemológico é particularmente adequado ao paradigma do mercado: sabemos apenas depois de acontecer. Ninguém sabe de antemão os preços que enfrentaremos na praça do mercado daqui a alguns minutos, muito menos amanhã. Isto acontece porque estamos todos a contribuir para as movimentações desses mesmos preços.

A sua dinâmica assemelha-se mais a uma “barafunda”, como também nos disse Joseph Schumpeter. Sabemos que é movido pela ação humana, que corresponde ao conjunto de trocas que gera a cada instante, aos novos equilíbrios e desequilíbrios que respondem permanentemente a estímulos instantâneos. A configuração dos vários processos não consegue ser antecipada pela miríade quase infinita de trocas e variáveis que as motivaram.

Pode então sugerir-se a seguinte definição: o mercado é uma atmosfera dentro da qual a informação sobre as condições de “desejabilidade” de um qualquer elemento (que, se é desejável, poderemos chamar “bem”) é insinuada de forma descentralizada, por entre possíveis interessados em obter o bem-estar respetivo ao bem, através de sinais que ilustram a relação, em tensão, dos esforços necessários para produzir e oferecer esse mesmo bem.

Os movimentos do mercado são dispensadores de informação: o mercado é uma forma de revelar perceções diferentes acerca dos valores que estão a ser trocados. Mas, de onde vem a inclinação à troca? O mercado existe porque as pessoas têm necessidades que gostariam de satisfazer. Esta propensão a trocar pode por isso ser considerada natural ou tão natural quanto as necessidades que a despoleta. Mesmo quem não tenha grande inclinação comerciante, estará sempre a trocar, até quando nada compra ou nada vende, estando, neste caso, a valorizar mais o tempo de lazer em que supostamente não entra no mercado, o que também é uma troca.

As necessidades que tentamos superar no mercado, contudo, têm graus de flexibilidade muito distintos quanto à premência da sua satisfação. A sua pressão pode ainda variar bastante conforme o contexto. Aquilo a que chamamos hoje necessidades, foram considerados luxos, e em alguns dos casos ainda há muito pouco tempo. Algumas dessas necessidades são despoletadas por sensações mais naturais (comer, dormir, etc.) e ritmadas, enquanto outras necessidades podem ser conjeturais, tradicionais (vestir, etc.), espontâneas ou até meramente sociais (enviar cartas, acesso à internet, etc.). Operam assim em graus diferenciados no que diz respeito à variedade e à urgência das escolhas. Assim o mercado também serve para obtermos bens de que gostamos ou meros luxos. Normalmente, medimos muito do nosso bem-estar pessoal através da compra daquilo de que gostamos – e não precisamos. Há bem-estar inerente à passagem para escolhas de bens cada vez menos prementes. Todos gostaríamos de poder escolher bens que apreciamos sem qualquer razão ou fundamento para isso. Um dos pilares mais cruciais da teoria económica diz-nos que temos uma tendência natural para querermos viver o melhor possível ou para irmos melhorando gradualmente as nossas condições de vida.

De um modo geral, no mercado, encontramos formas de obter satisfação pessoal. O mercado vai-nos permitindo atingir sensações de bem-estar. No fundo, evita estarmos constantemente a ter de produzir os bens de que precisamos, ou de que gostamos. No mercado, encontramos produtos num estado diferente daquele em que os poderíamos encontrar sem mercado. O mercado é uma forma de pouparmos o trabalho que teríamos se houvéssemos de produzir o que compramos. Muitas vezes, encontramos produtos no mercado num estado mais apetecível, ou final, do que no estado em que os teríamos encontrado se fossem meramente descobertos na Natureza. Assim sendo, o mercado é indissociável da ideia de transformação de elementos da Natureza. É uma forma de aduzir valor a uma cadeia de elementos encontrados primeiro em bruto; ou, mais tarde, semiproduzidos. O mercado é o aproveitamento de elementos com vista a que essa transformação adicione capacidade de gerar bem-estar. O mercado é, depois disso, a procura da eficiência ao longo dessa cadeia transformadora, que vai agregando aos produtos características que aumentem o seu potencial para a geração desse bem-estar.

Apesar de nos permitir promover o bem-estar geral, o mercado não é um dispositivo que nos permita ultrapassar um inescapável problema basilar: temos de enfrentar a insuficiência geral de bens porque, cada um de nós, gostaria de ter cada vez mais. Gostaríamos de poder ter tudo. Por isso, o mercado não evita termos de fazer escolhas difíceis. O mercado é precisamente o nome dado à troca quando nos apercebemos da necessidade de trocar entre bens igualmente importantes. A pedra mais basilar da análise de mercado é, portanto, a inevitável escassez. Daqui podemos afirmar que só conseguiremos obter um bem, oferecendo outro em troca. Não existe gratuitidade.

Caso pareça que temos alguma coisa que simplesmente apareceu e que possa gerar bem-estar, terá de ter existido um esforço anterior que a tenha justificado ou pago. Mesmo que uma árvore dê fruto num terreno sem proprietário (situação difícil de imaginar), até o ato de o colher pode ser considerado o esforço compensatório, ou trabalho, inerente à obtenção da satisfação que retiramos ao comer o fruto. Quando algo nos parece de forma aparentemente “gratuita”, certamente que alguém efetuou os esforços para o obter anteriormente, dado que a mera Natureza não nos brindou com a construção de artefactos valiosos. Embora tudo o que temos haja vindo de forma muito indireta da Natureza, se pensarmos naquilo que existiria no início da história da humanidade, então os artefactos que nos circundam tiveram de ter vários graus de envolvimento das nossas ações com vista a obter novos elementos dos elementos anteriores.

Assim sendo, o mercado assimila três importantes traços, que nele se misturam. Por um lado, (1) as pessoas não são saciáveis e querem sempre mais; em segundo lugar, e por via da não existência de saciedade, (2) a escassez é inevitável, ou seja, nunca teremos tudo o que queremos. Em terceiro, e precisamente por não determos tudo, (3) somos levados a ter de fazer trocas.

Por vezes, o estado pode-nos dar uma falsa sensação de gratuitidade, se usarmos o seu serviço. Mas o estado, tal como qualquer agente, terá de mobilizar esforços e recursos, e tomar decisões relativas à escassez. A forma de obter esses recursos será por via dos impostos e estes serão retirados às pessoas de forma coerciva.

Ajustamentos e preços

É sempre possível argumentar que, no limite, o mercado baseia-se na chamada troca direta. Quer dizer, trocamos, afinal de contas, bens por bens. Ou, dito de melhor forma: trocamos os bens que temos por outros bens que ainda não temos. Ao vendermos um bem a troco de dinheiro, e com este comprarmos outro, podemos imaginar que nos pontos mais afastados da troca foram trocados efetivamente bens por bens. Consoante lembrou David Hume, a inclusão do dinheiro na troca não modifica a estrutura da troca. O dinheiro é apenas o “óleo” da economia, um facilitador das permutas, que permite dar uma resposta mais imediata, sem a constante necessidade de confirmar de antemão as preferências e inclinações de cada agente. O dinheiro existe porque torna a troca direta mais ágil. Se cada pessoa tivesse de produzir um bem, com vista a trocá-lo com outrem que gostasse desse mesmo bem, afunilaria o número de potenciais parceiros. Mais difícil ainda: teria esta segunda pessoa de ter em sua posse um outro bem desejado pelo primeiro. As trocas que não envolvem dinheiro são mais esparsas e raras.

Porém, apesar de parecer complicado, a insistência na ideia de que permanecemos sempre em sistema de troca direta teria uma vantagem enorme: demonstraria inequivocamente que não é por se aumentar o agregado geral do dinheiro em circulação que avançaremos em termos de bem-estar geral. (Normalmente, o efeito geral do aumento do dinheiro em circulação é meramente um crescimento geral dos preços, sinal de que o nível geral de produção de bens está a ficar, em termos relativos, mais escasso do que a circulação do dinheiro.) Apenas aumentando a produção de bens e serviços será possível aumentar o bem-estar geral.

Para além da troca direta, e ao longo da já longa história do pensamento económico, os pensadores que trabalharam sobre estes temas demoraram muitos séculos até estabelecerem a divisão clássica, com que analisamos o mercado, entre consumidores e produtores. Na realidade, oferta e procura pareciam estar como que misturadas nas ações de cada um dos agentes económicos, dado que quem oferece um bem, oferece-o para que com ele possa procurar um outro bem que deseje mais. E não é firmado de antemão que uns serão meros produtores ou outros apenas consumidores. Somos ambos ao mesmo tempo. Há por isso razões para darmos este passo atrás e analisarmos o funcionamento do mercado como se estivéssemos, na verdade, nos dois lados ao mesmo tempo.

Ainda segundo David Hume, as mentes dos homens são “os espelhos” umas das outras. Daí terem ações e reações refletidas entre si, que, no final de um processo de ajustamento por cópia e observação, são parecidas. Formaríamos, explica-nos, uma espécie de consenso em torno das formas de agir que consideramos apropriadas. Os nossos gestos pareceriam muitas vezes ser reflexos uns dos outros. Seria raro vermos reações excêntricas ou muito originais, que ao acontecerem até chamam a nossa atenção. Segundo esta tradição de pensamento, as ações boas são aproximadas umas às outras, resultam de um baixar das paixões mais efervescentes ou autocentradas. Esta conduta é motivada pela interiorização de que somos apenas um em milhões de outros seres humanos, sem razão alguma para nos acharmos demasiado especiais, ao ponto de podermos invocar excecionalidade. Não conseguimos justificar ações nossas fora da regra geral que exigiríamos aos outros. No fundo, devemos pensar nas nossas ações como se as observássemos do lado de fora, através de um “espectador imparcial”, ou alguém que estivesse a passar naquele momento por acaso. Tenderemos assim a aprovar ações motivadas por um certo autocontrolo pessoal. Mas essa ação, ou gesto, que leva a reações parecidas uns dos outros, deixa transparecer, pela sua repetição, uma espécie de forma de estar idêntica entre todos os que agem, e que acaba por ser vista e aprovada como sendo a mais correta. Daqui se formam as regras de justa conduta.

Este modo de ajustar as reações mais extremadas, tendo em atenção aquilo que poderiam ser as observações dos outros, é uma forma de ponderar as reações de outros, e assim inculca um possível julgamento desses potenciais ou reais observadores. Este movimento faz lembrar a procura de pontos de equilíbrio, ajusta-se em torno de sinais que se deixam espelhar no semblante dos observadores e ajuda a criar um certo consenso moral. Mas, por partir de todos e estar voltado para todos, e pela forma como se forma através de aproximações, por uma interação em que se vai moldando e reajustando os gestos e sentimentos, este processo pode fazer lembrar o modo de calibrar dos preços no mercado livre. O ajustamento dos preços é um processo em que os vendedores têm de se colocar “na pele” dos compradores, trocando de lugar em termos imaginativos, pensando estes na satisfação que teriam ao ter aquilo que tem o vendedor. Chegando através da interação a um sinal revelador de informação e aproximadamente igual para todos – o preço. A informação agregada no preço traduz as relações de escassez do bem, as dificuldades de o fornecer, a premência ou urgência de o obter, a satisfação que pode dar a quem o tiver e o que ele representa aos olhos dos outros.

Os preços que vigoram são praticamente iguais para todos e resultam numa interação entre todos os agentes, que pode ser mais tarde examinada na divisão clássica entre produtores e consumidores. Mesmo que encontremos preços diferentes atribuídos ao mesmo bem (nomeadamente, uma margem entre o preço de compra e o preço de venda), os preços aproximam-se a prazo, e oscilam no mesmo sentido.

Dito de outra forma, o preço de um bem é um sinal concreto e definido que mostra, rapidamente e num só número, a escassez relativa de um bem, tendo em conta o potencial de satisfação que o bem parece poder gerar. No fundo, cada preço de que dispomos é o resultado condensado de milhões de decisões que momentaneamente interagem para que ele apareça. O preço poupa-nos muito trabalho de pesquisa porque mostra de forma imediata tudo o que precisamos de saber para optar e decidir no mercado. O preço, por palavras ainda simples, é uma espécie de esponja absorvente de informação em mutação constante, que captura e assimila tudo o que é possível que contenha.

O preço reporta uma grande parte de tudo aquilo que todos os agentes não sabem a nível individual sobre o bem (nem precisam de saber para decidir no mercado). Mas, ao conciliar informação dispersa entre todos, permite escolhas ponderadas e racionais. Quer dizer, só temos de olhar para o preço para sabermos se vale a pena comprar ou se vale a pena vender isto ou aquilo. O preço denota o processo do próprio mercado em andamento e não existiria na sua ausência.

O preço em mercado livre emerge de uma fricção entre um conjunto alargado de potenciais compradores, por um lado, e um conjunto de potenciais vendedores, do outro. Quanto mais alto estiver o preço do bem, mais vendedores estarão dispostos a largá-lo a troco desse preço, dado que esse preço alto representa muitos outros bens de que esse vendedor estaria a abdicar, caso o mantivesse em sua posse. Mas os compradores, por seu turno, ficam desmotivados. Notam que o preço alto significa que terão de abdicar de mais bens para o conseguir. Caso esse preço elevado esteja a motivar os vendedores a trazerem mais desse bem para o mercado, esse alargar de número de fornecedores obrigá-los-á, por seu turno, a concorrerem uns com os outros, pelo que poderão tentar aliciar os potenciais compradores deslizando ligeiramente para baixo esse preço que era alto, de forma a atrair mais compradores. Mas, neste deslize, compram primeiro aqueles que tinham mais “disponibilidade para pagar”. O comprador de um bem é sempre o licitador mais alto, ou seja, aquele que valorizou mais o bem. O mercado é um “leilão implícito” em que os compradores potenciais licitam o bem, se este tiver um preço muito baixo, mas à medida que o preço sobe alguns desses potenciais compradores retiram-se da corrida.

Em termos estáticos, com preços altos temos imensos vendedores (mesmo pessoas que gostassem de ficar com o bem começam a pensar em vendê-lo: consumidores transformam-se em produtores) e poucos compradores. Com os preços muito baixos, temos imensos compradores (quem não quer comprar a um preço muito baixo?) e poucos vendedores (a um preço baixo, ficam com o bem, ou não compensa produzi-lo: produtores transformam-se em consumidores).

Agora imaginemos os pontos intermédios, em que o preço não está particularmente alto nem particularmente baixo. Neste caso, quando sobe ligeiramente, desmobiliza alguns compradores e aparece um ou outro novo vendedor. Quando desce ligeiramente, aparece mais um ou outro novo comprador e desaparece um vendedor. O preço de equilíbrio é aquele ponto em que os vendedores e os compradores estão ajustados. Estão como que a dar as mãos: os compradores e os vendedores trocam o bem ao preço (chamemos-lhe agora preço de mercado) que emergiu desta interação entre consumidores e produtores, potenciais e reais. Assim chegam aos preços e às quantidades, a que chamamos equilíbrio. A este preço, as quantidades produzidas remuneram as melhores alternativas dos vendedores ao mesmo tempo que os compradores retiram uma satisfação superior às suas alternativas. 

Em termos dinâmicos, a oscilação dos preços indicia a realidade na atmosfera envolvente. Quando um preço de um bem sobe, isso pode significar que é mais custoso produzi-lo, ou que há mais pessoas a retirar dele satisfação e por isso o procuraram mais, ou então, o que é dizer o mesmo, que o bem se tornou mais escasso. Dito isto, podemos afirmar que nenhum bem “desaparecerá”. Quando muito, subirá de preço. E, ao subir de preço, estimulará a produção de bens alternativos, a que os economistas chamam “bens substitutos”. Outros bens, pelo contrário, podem ter descido de preço, significando que foi facilitada a sua produção, ou que há mais pessoas a procurar bens alternativos a estes, ou então, o que é dizer o mesmo, há abundância desse bem.   

Formas de mercado

O mercado assimila os impulsos dos agentes. A configuração geral do mercado corresponde muitas vezes ao agregar das escolhas dos agentes individuais. Ao analisar o mercado do ponto de vista exterior, é possível fixar um momento único concreto e intuir como determinadas variáveis económicas reagiriam perante pequenas variações das escolhas individuais. Essas tendências gerais parecem revelar relações que se repetem, estabelecendo uma relação que parece mecânica entre variáveis, e que por isso designamos também por leis, tal como fazemos noutras áreas do conhecimento.

Não é por acaso que a escola clássica de economia, mais ou menos um século depois de Smith, foi usando essa palavra, Lei, para designar a forma como as oscilações de procura e oferta conspiravam para alcançar os preços de equilíbrio e o modo como estes oscilam. Muitas vezes, a lei da oferta e da procura pode arrastar consigo os termos de troca com muito mais firmeza do que as próprias leis do governo. Vejam-se os casos em que o governo proíbe certos mercados de existirem, mas em que estes se formam na mesma, adaptando-se ao enquadramento que têm. Vejam-se os múltiplos casos em que se tenta tabelar um preço destruindo o mercado, ou parte dele, e gerando apenas mercados paralelos com preços de mercado ainda mais destorcidos do que se não existisse qualquer tentativa de os tabelar.

Devemos a Alfred Marshall, no seu Principles of Economics, a formalização geral dos desenhos gráficos que ainda hoje usamos para descrever os movimentos espaciais da procura e da oferta perante a variação de preços ou de quantidades. Claro que já John Stuart Mill, em obra com o mesmo título, e William Stanley Jevons, em A General Mathematical Theory of Political Economy, haviam uns trinta anos antes introduzido a ideia de utilidade marginal, ajudando a explicar a forma como a procura e a oferta em equilíbrio se movimentariam hipoteticamente tendo em consideração pequenas alterações no preço ou na quantidade disponível.

Como já foi dito, a “lei da procura” sugere uma relação inversa entre preços e quantidades. Quanto mais alto estiver um preço, maior relutância cada uma das pessoas terá em comprar esse bem, uma vez que essa escolha representaria estar a abdicar de outros bens. Logo, reduz a quantidade de bem procurada. Quanto mais baixo estiver um preço, maior será a quantidade procurada, uma vez que estaremos a abdicar de menos bens alternativos. Isto se estivermos perante um bem normal. (Há bens Giffen, cuja atratividade pode subir com a subida do preço, mas tal efeito não é comum.)

A “lei da oferta” pode ser assim descrita: quanto mais alto estiver um preço, maior será a possibilidade de produzir esse bem, dado que se viabilizará a inclusão de agentes económicos menos eficientes na produção desse bem. A subida de um preço, logo, leva a uma maior quantidade oferecida desse bem. O que esta teoria sublinha é simples: quanto mais alto estiver um preço, mais compensará desmobilizar recursos de outros usos e começar a produzir esse bem que por ora está mais alto. Quanto mais baixo estiver um preço, melhor será para alguns produtores produzir outros bens, e não este. Assim sendo, poderemos imaginar que, à medida que um preço sobe, haverá mais quantidade produzida desse bem disponível. E quanto mais desce, menos oferta.

Contudo, a tendência normal do mercado, em concorrência aberta, passa por conseguir aperfeiçoar, em cada empresa, as técnicas que permitam utilizar os mínimos esforços para alcançar a máxima produção de bem-estar. A concorrência é por isso uma alavanca do bem-estar na sociedade. Quando se diz que, no mercado aberto, as empresas são maximizadoras de lucro, aquilo que se sugere é que existe uma pressão para encontrar formas que facilitem e embarateçam a produção. Ao mesmo tempo, para maximizar os ganhos, os concorrentes terão de melhorar os seus produtos, produzindo aquilo que as pessoas gostam efetivamente. Isto disciplina o uso de recursos (lado dos custos) e potencia a qualidade dos produtos (lado das receitas). A concorrência, pela pressão que exerce para se diminuírem custos e para se maximizarem os ganhos, acaba por levar as empresas a gerar mais valor na sociedade.

Mas, como bem lembrou Friedrich Hayek, esse conhecimento das técnicas inovadoras que facilitem ou embarateçam a produção só será atingido dentro do funcionamento real e prático do mercado. Não há forma de descobrir como gerir melhor os recursos escassos se não sentirmos a pressão de termos de operar num mercado em que os concorrentes estão a conseguir fazê-lo. Não poderemos saber como embaratecer um produto se este só for oferecido por um único agente, o qual, por ser único, pode sempre dizer que custa o que ele disser que custa, ou quiser que custe.

Relativamente à estrutura clássica de análise da oferta, temos um conjunto de situações possíveis, a variar tendo em conta o número de empresas fornecedoras. Se tivermos só uma, monopólio. Se várias, concorrência. Se a entrada no mercado for livre, o número de empresas oscila livremente e é muito grande, todas sabem mais ou menos o mesmo, aproximando-nos da chamada concorrência perfeita. Se os fornecedores forem os únicos a oferecer um bem assinado por si e que é seu, mas em que outros fornecem produtos na mesma lógica, mas que são seus, temos a concorrência monopolística. Os restaurantes podem ser exemplos deste último caso: qualquer pessoa pode abrir um restaurante e vender hambúrgueres (concorrência). Apenas a McDonalds pode vender-lhe um fantástico BigMac (monopolística).

Se apenas existir um único fornecedor de um bem, este pode ter maior margem de escolha na forma como tenta otimizar a relação entre preço e quantidade, orientada para maximizar o seu ganho. Tem maior margem para fazer reaproximações ao preço e, em alguns casos, bastante possibilidade de influenciar este preço. Enfrenta a procura integral pelo seu produto, mas, ainda assim, concorre com outros produtos. E nem sempre é fácil discriminar entre clientes, logo, nem sempre conseguirá apropriar-se de todo o bem-estar dos consumidores, que ainda assim será naturalmente reduzido. Nesta situação, existe normalmente um lucro económico associado. Por isso, outras empresas terão incentivo para entrar nesse mercado e vender esse mesmo produto. Caso o mercado esteja aberto, qualquer agente tentará entrar e fazer aquilo que ao outro está a ser rentável, repartindo esse lucro com ele. Essa entrada de um novo agente vai capturar uma porção do mercado, talvez por ser novidade, mas mais incisivamente pela agressividade competitiva de quem entra no mercado: colocando os seus preços abaixo dos preços praticados pelo seu concorrente.

Das várias teorias de análise dos oligopólios, sabemos que a abertura a mais empresas trará tendencialmente um abaixamento geral de preços, associado a um aumento de quantidades oferecidas no mercado. Mas também contribuirá para melhorias nos indicadores de eficiência, que baixam custos. Quantas mais empresas entrarem no mercado, mais esses custos serão revelados, as melhores práticas copiadas, e com isto teremos um baixar dos custos em geral, que melhoram os produtos e os embaratecem. A concorrência ajuda a baixar os custos também ao expelir do mercado aqueles que não conseguem acompanhar essa mesma descida de preços. Em concorrência perfeita, teremos os custos de produzir a próxima unidade de um bem quase constantes e praticamente iguais ao preço de venda do produto. Existe lucro no sentido contabilístico: os custos de que falamos já remuneram a melhor alternativa preterida pelo agente ao escolher fazer este bem. Mas não existe um lucro anormal ou económico.

Haverá uma continuidade da situação de monopólio apenas caso o estado não permita a entrada de um possível novo fornecedor concorrente. Apenas existem monopólios quando o estado os protege desta forma: inibindo os potenciais concorrentes. Se o estado não interferir no mercado, mesmo uma empresa que esteja (por absurdo) sozinha será forçada a comportar-se como se estivesse em concorrência: até para tentar inibir a entrada de potenciais concorrentes, que entrarão nesse mesmo negócio se notarem a existência de lucro económico.

Mantendo situações competitivas e com múltiplos agentes a oferecer e a procurar os bens no mercado, não haverá margem para ganhos anormais ou para que se use algum tipo de força. Se cada agente puder vir a oferecer amanhã aquilo que hoje procura, isto é, se o mercado for aberto, dificilmente acontecerão situações destorcidas dos equilíbrios de mercado.

Assim sendo, em termos teóricos, podemos ter no mercado situações em que apenas um único agente pode vender, e a situação contrária em que o mercado está aberto e um conjunto alargado de agentes fornece um bem muito semelhante entre si. Estes são os pontos extremos. Pelo meio, teremos a hipótese mais realista e prática: ora (1) avançamos para a concorrência, e mais agentes aparecem ou desaparecem (caso comecem a ter prejuízo); ora, ao invés, apontamos para a proteção dos existentes, e (2) avançamos para o monopólio. Neste caso, há lucro. As empresas tentam naturalmente aproximar-se deste caso (adorariam eliminar a concorrência), mas os consumidores devem preferir a aproximação ao primeiro caso.

Sucede que os consumidores são todas as pessoas no mundo. A estrutura do lado da procura é muito mais simples. Todos somos potenciais consumidores. Pelo que naturalmente não nos conseguiremos reunir para obter vantagens no mercado ou para pressionar o governo à abertura dos mercados. A oferta, pelo contrário, é promovida por fornecedores, que são poucos e mais facilmente identificáveis, e que, por serem poucos, conseguem reunir-se, falar entre si e manifestar-se. Conseguem que os governos legislem a seu favor. Os fornecedores, no mercado, podem usar formas de fazer pressão política, nomeadamente em nome de causas exteriores ao mercado: ambientais, morais, sociais, entre outras – e, com base numa argumentação com propósitos exteriores à lógica do mercado, conseguem induzir ou limitar a concorrência. Tem sido natural, com base em argumentos, por exemplo, ambientais, proibir que certos bens sejam produzidos ou forçar para que sejam produzidos de determinada maneira ou advogar o seu banimento. Por esta via, permite-se que a produção seja subtraída da produção dos possíveis concorrentes. Ficamos com a produção apenas daqueles que já se encontram no mercado. Ao reduzir a oferta, os preços sobem. As empresas que suportam os estudos que dão base a esses argumentos estão naturalmente a vender os produtos permitidos ou feitos da maneira permitida.

Trabalho e tempo

A origem desta divisão clássica de análise do mercado pode encontrar-se observando a dicotomia entre as necessidades naturais que sentimos constantemente e a inevitável escassez das formas que encontramos de as satisfazer. Desta tensão emerge: a procura de bens, motivada pela nossa procura de satisfação, por um lado, e a oferta ou fornecimento desses bens, por outro, uma inclinação mais complexa, mas que tem a mesma motivação da procura. A oferta ocorre como sendo um meio para alavancar as possibilidades de consumo de quem está a oferecer. De um modo geral, podemos dizer que quem oferece um produto tem em vista os seus interesses. Mas só poderá ter sucesso oferecendo aquilo que os outros quiserem, isto é, satisfazendo os interesses dos outros

Tipicamente, por isso, não associamos muita satisfação pessoal à atividade de oferta ou produção de bens. Retiramos satisfação no mercado sobretudo enquanto consumidores. Somos produtores ou fornecedores apenas no desejo de invertermos a nossa posição ao final do dia. Para sermos fornecedores, temos de entrar em atividades empresariais que nem sempre são agradáveis em si mesmas. Preferimos, em princípio, não nos expormos aos inevitáveis riscos dos negócios. Preferimos obter rendimentos mais seguros e previsíveis, ainda que mais baixos, do que arriscarmos uma atividade económica com resultados mais incertos ou instáveis. Uma das dificuldades com prossecução das atividades que visam a oferta prende-se com a forma como o processo de fornecimento se estende ao longo do tempo. Consiste em decisões presentes que envolvem a incerteza do futuro.

O mercado de trabalho é um bom exemplo. Em cada hora que trabalhamos, perdemos o bem-estar equivalente a uma hora de liberdade. Mas fazemo-lo para depois podermos usufruir de uma outra hora em que não trabalhemos. O lazer é o fim da atividade do trabalho. O trabalho é um meio para o atingirmos. Sem trabalho algum, também não existia lazer. Se todos os dias fossem feriados para toda a gente, e se toda a gente gozasse o feriado, não teríamos nada que pudéssemos consumir, nem nada que fazer. Os dias perderiam valor, e a vida seria curta. Precisamos que todos trabalhem para todos ou outros. E o lazer de um é o trabalho de outro, e o lazer deste último será o trabalho do primeiro.

O mercado de trabalho é, na realidade, o mercado do lazer.  O trabalho é uma espécie de “mal” no sentido estrito e económico do termo e o lazer é um “bem”. Cada trabalhador está assim do lado da oferta de trabalho. O trabalhador vende o seu “tempo”. Esta é a variável mais importante do mercado. Sendo o tempo o recurso mais escasso das nossas vidas, pela finitude da nossa própria vida, todos os mercados representam formas de troca de tempo. Quem tem mais tempo livre, ou é mais jovem, aposta em decisões que lhe poupem dinheiro, o outro recurso escasso. Quem tem menos tempo livre, ou é mais velho, tende a pagar em dinheiro formas ou opções que lhe poupem tempo. Este efeito acontece porque o bem-estar nem sempre é imediato e por vezes podemos preferir deferir satisfação para o futuro. É em torno desta diferença que temos uma das mais importantes distinções do mercado: o consumo e a poupança.

Retiramos satisfação do consumo presente, apenas. Mas é poupando que conseguiremos ter o retorno que nos permita vir a melhorar esse consumo, no futuro. Enquanto consumir é obter satisfação imediata, poupar pode-nos levar a investir em objetos com capacidade de geração de bem-estar no futuro. A relação entre tempo e dinheiro está no retorno compensatório do próprio dinheiro, o juro, que é o preço do dinheiro medido no tempo. Este está inculcado no valor pago, ao longo do tempo, pela utilização de dinheiro que ainda estaria na posse de outras pessoas. O juro ocorre quando as pessoas antecipam um pagamento no presente com dinheiro que ainda pertence a outros – estes últimos que o pouparam e por isso obtêm uma remuneração futura. A atividade bancária representa o mercado do tempo. (Estamos a ignorar a criação monetária, claro.)

O valor de algo é a relação com a satisfação imediata ou futura que advém de determos esse bem connosco. Mas enquanto a satisfação imediata poderá ser muitas vezes apreciada rapidamente, e por isso gera menos dúvidas, a determinação da satisfação futura que um bem pode alcançar é mais duvidosa. Esta incerteza foi chamada de risco. Os bens que têm capacidade de gerar bem-estar no futuro têm por isso um nome especial: ativos. Os ativos não derivam muitas vezes de uma capacidade de gerar bem-estar instantânea, mas sim ao longo do tempo. Têm ainda a capacidade de aumentar as possibilidades de criação de bem-estar futuro. Mas essa capacidade é incerta porque desconhecemos em que estado encontraremos o mercado – ou esses ativos – amanhã. Podem valorizar ou desvalorizar. Estes bens especiais (especiais, por terem impacto ao longo do tempo) foram também designados por “capital”.

Segundo o funcionamento do mercado, haverá uma tendência para que se obtenha um maior retorno assumindo esse risco dos negócios incertos, dado que poucas pessoas estarão dispostas a assumi-lo, enquanto procurar empregos mais estáveis, com menos risco, poderá ter retornos inferiores, dado que estaremos mais dispostos a concorrer para eles. É como se existisse um pagamento ficcionado, pago pela segurança, que é pago pelos mais prudentes, para fugir ao risco, diretamente àqueles mais empreendedores, que assumem o risco.

No mercado, temos assim duas dimensões em interação permanente e dinâmica. Como vimos, temos aqueles que procuram um bem, e temos aqueles que estão dispostos a oferecê-lo. O problema é que, muitas vezes, a procura por um bem só existe após haver surgido esse bem. No mercado, podem surgir bens que não existiam antes, principalmente quando estes parecem melhorar a vida das pessoas. Uma das mais interessantes formas de fazer concorrência passa, assim sendo, não tanto por embaratecer marginalmente um preço de um produto existente, mas sim, por produzir um bem novo que revolucione o mercado. Por vezes, criam-se novos mercados, destruindo de forma criativa os mercados anteriores ou modificando-os para sempre, consoante nos disse Joseph Schumpeter.

Consta que Henry Ford terá dito que não fez qualquer estudo de mercado para lançar o seu primeiro modelo Ford. É-lhe atribuída a frase: “Se tivesse perguntado às pessoas o que elas queriam, ter-me-iam dito: cavalos que corram mais depressa.” A procura é despoletada na facilitação que um automóvel representa na vida das pessoas, no seu bem-estar ou na satisfação que consegue gerar. Claro que o empresário nem sempre acerta naquilo que as pessoas querem. Mas as pessoas anseiam pelos produtos que possam melhorar as suas condições de vida, de forma gradual, e tendencialmente acima das suas necessidades básicas. E, uma vez satisfeitas estas, voltam-se para satisfazer outras. Há sempre formas de melhorarmos a nossa condição.

O mercado tem sido, ao longo da história, a forma mais eficiente de desencadear o ambiente que eleva e melhora as condições de vida, precisamente por via desta disciplina que força os fornecedores de um bem a inculcar as melhores práticas, que muitas observam nos outros, e a tentar ainda inovar, partindo para outras práticas com vista a conseguir que o seu produto seja preferido e comprado. Dado que só compramos no mercado voluntariamente, cada fornecedor fica à nossa mercê. São os consumidores quem decide a que empresa compram e em que quantidades. Logo, são os consumidores, pelos seus impulsos e vontades, que podem ou não remunerar os esforços dos fornecedores dos bens. Os fornecedores têm de oferecer no mercado aquilo que os consumidores querem, sob pena de falirem se não o fizerem.

A persuasão é, por isso, um dos traços mais distintivos do mercado. Perante múltiplos agentes que oferecem bens, cada um deles tenta distinguir-se dos demais através da sua qualidade, imagem ou marca. No mercado, a forma de mostrar traços marcantes, evitando a exposição a situações de concorrência perfeita, pode passar pela atividade de marketing. O marketing existe porque a empresa não tem outra forma atrair os consumidores que não seja precisamente aliciando os consumidores. Apenas o estado pode, e usa, a força. A persuasão é um traço muito positivo do mercado: mostra a fraqueza das empresas fornecedoras. 

Ao contrário do que dizia Karl Marx, não existe “grande capital” ou “pequeno capital.” Estes adjetivos pressupõem um “mercado” estagnado e parado no tempo: não seria um mercado. Na “barafunda” do mercado, são os consumidores satisfeitos quem momentaneamente pode tornar hoje grande aquela empresa que ainda ontem era pequena, quando compram os seus produtos. Fazem dos pobres, que iniciaram esta empresa, novos ricos. São também os consumidores, ao deixar de comprar da antiga grande empresa, que a diminuem, tornando-a pequena. (Num segundo: veja-se o caso da Nokia, por mero exemplo.) Isto pode acontecer quando aparece um produto melhor de outro fornecedor, obrigando-a a diminuir ou a fechar. Fazem dos ricos, novos pobres.

Como o decisor, ou seja, o consumidor, é, no fundo, quem controla a empresa, à empresa apenas lhe resta obedecer ao consumidor. À empresa cabe oferecer o melhor produto que conseguir fazer. Num sistema de mercado aberto, o poder concentra-se em cada um dos múltiplos decisores que na praça compram, ou deixam de comprar, este ou aquele produto. O consumidor decide livremente, exige e comanda. A empresa obedece e esforça-se por antecipar aquilo que o consumidor vai querer no futuro.

Mas esta forma interativa com que o mercado consegue conciliar, processar e ajustar preços e quantidades, permitindo compensar os esforços da oferta, enquanto gera bem-estar nos consumidores, pressupõe que o mercado se encontra livre e aberto. Este efeito pode ser desvirtuado e destorcido com imensa facilidade se um dos agentes tiver força para vincar as suas decisões sem precisar de entrar nos movimentos adaptativos de ajustamento. Na nossa economia, apenas o estado pode interferir no mercado com força coerciva. Todos os agentes económicos, no mercado, têm de usar a persuasão e ajustar-se à realidade, exceto o estado, cuja potência lhe é atribuída por razões políticas. Existem, no entanto, bens com características consideradas públicas e cujo fornecimento pode implicar uma dimensão de escolha política.  

Falhas de mercado

A análise que fazemos do mercado, enquanto processador da interação, centra-se até aqui nos chamados bens privados: bens em que a parte do bem que um agente usufrui deixa de estar disponível a outro. Mas há bens que são públicos. Os bens públicos são bens cujo consumo de um agente não diminui o impacto que o mesmo bem pode ter noutro agente. Quando um farol junto à costa permite aos pescadores de um barco ver luz no meio de uma tempestade, a intensidade dessa luz não é reduzida se for vista por outros pescadores, que também estejam no mar noutro barco. Este é um dos mais claros exemplos de um bem público. A luz do farol é a mesma, e sua intensidade mantém-se, quando vista por todos os que estiverem no mar naquele dia de tempestade. Adicionar um pescador não reduz a intensidade da luz. Se deixarmos a construção de faróis completamente deixada à livre iniciativa privada, poderíamos sentir uma falha de provisionamento, conhecida precisamente por falha de mercado.

Nenhum pescador teria incentivo a pagar sozinho por um farol que o salvasse no meio da tempestade, uma vez que ao colocar lá o seu farol, a luz iluminaria também outros pescadores, que não teriam pago. Estes últimos teriam “ido à boleia” do esforço do pescador que o comprou. Bens que tenham características públicas geram estas situações.

A teoria económica também notou que a defesa nacional tinha características deste género: o F-16 que me protege ao sobrevoar o meu telhado protege também o meu vizinho de baixo, com a mesma intensidade. Assim sendo, o bem é, em termos técnicos, “indivisível”. E, uma vez fornecido, tem ainda outra característica: é impossível excluir o meu vizinho de baixo ou qualquer outra pessoa. Uma vez fornecido, não há rivalidade no consumo. A defesa e a administração da justiça são muitas vezes competências dos governos a nível central, dada a dimensão pública destes bens ser preponderante. Tal como bem explicou Richard Musgrave, cuja classificação se tornou clássica, outros bens, como a saúde e a educação, têm características muito mais variadas e complexas. Como tal, entram no debate político as formas de os fornecer, manter e gerir. Há alguma rivalidade no consumo, e por isso a articulação com o mercado deve ser feita para que possam ser introduzidos critérios de eficiência. Porém, ao dialogarmos com alguém mais instruído e mais saudável, também ficamos melhor. A saúde e educação dessa pessoa teve uma repercussão em nós. Este impacto sobre outrem vindo do consumo de alguém tem o nome de “externalidade”. A externalidade ocorre quando o consumo de um bem tem impacto sobre um outro agente que era independente dessa transação inicial.

Dado que o agente, nestes casos, não compreende em si todo o bem-estar ou mal-estar inerente à sua escolha no mercado, também a externalidade poderá ser uma espécie de falha de mercado. Este impacto nos outros revela uma componente pública que deve ser ponderada em termos políticos, incentivando os impactos positivos e restringindo os negativos.

Há, porém, bens ainda mais complexos: os bens de clube, por exemplo. Estes são bens onde é possível excluir pessoas, por exemplo por falta de pagamento, “à entrada”, mas em que, uma vez alcançado o acesso aos bens, a intensidade com que os mesmos são fornecidos parece não erodir a satisfação de consumidores adicionais, até certo ponto. Nestes casos, o fornecimento e os consumidores deveriam ser ajustados numa interação dinâmica, tendo em atenção a dimensão pública e privada do bem. O mercado é especialmente ágil a lidar com a componente privada, mas, em nome do bem-estar geral, podemos ter de projetar o bem de clube através de alguma iniciativa política local. Pelo contrário, há bens que pela sua natureza não facilitam a exclusão de ninguém, tal como um bem público, mas cujo consumo de uns diminui muito a possibilidade de outros os consumirem. O peixe no mar pode ser um exemplo. Pela acessibilidade do mar, qualquer pessoa pode tentar pescar. Mas o peixe que pesca já não estará disponível para nenhum de nós pescar. Estes são os bens do tipo recursos comuns. Elinor Ostrom ilustrou como a criação de regras a nível de local, em algumas comunidades, poderia minimizar os problemas associados à dimensão “trágica” da excessiva utilização dos recursos.

No mercado, temos ainda situações em que a informação não é difusa e plenamente partilhada, como assumido nos modelos de concorrência, podendo gerar um outro tipo de falha de mercado. Se uma parte do mercado tiver um conhecimento mais profundo sobre o bem do que a outra parte, poderemos ter inibições que redundem num desaparecimento desse mercado. O mercado de automóveis usados é um dos exemplos clássicos: os vendedores conhecem melhor o carro.

Em mercados com assimetria de informação entre agentes, ou com a chamada seleção adversa ou com o moral hazard, nem sempre os equilíbrios de mercado se deixam capturar efetivamente na forma interativa descrita através das oscilações entre as curvas da oferta e da procura. Os mercados dos seguros encontram-se normalmente perante este género de inquietações. O governo pode ser chamado a intervir em situações deste género.

Muitos estudos têm sido elaborados sobre a forma como o estado interage, ou deve interagir, com o mercado, e este tem sido um assunto inesgotável. Mas, de forma muito resumida, o estado ao interferir tenta obter um arranjo ou compromisso que não resultou da interação livre entre os agentes económicos. Isso pode ser desejável do ponto de vista social.

O governo pode tentar minimizar a incerteza e a assimetria de informação obrigando certos agentes a deter determinados seguros ou outros requisitos. Pode passar por obrigar agentes a internalizar parte das externalidades, se estas foram negativas. Mas outras políticas de interferência no mercado podem ter consequências mais comprometedoras. A tentação para fixar preços, por exemplo, é fruto de uma intenção benigna, mas cujo resultado acaba normalmente por ser contrário à intenção. Destruindo os sinais dos preços, surgem mercados paralelos mais descontrolados. 

Em parte, algumas formas de regulação têm também este efeito: a intenção é muito diferente do resultado obtido (algo visível sobretudo quando se especificam aspetos particulares do negócio que se tenham de cumprir). A regulação pode ser neste caso percecionada como um conjunto de barreiras, baseadas em pormenores (muitos deles burocráticos e sem qualquer relevância) que nem todos os agentes conseguem cumprir, deixando muitas vezes os poucos agentes que conseguem cumprir os requisitos a operar de forma mais dominante no mercado ou até a funcionar à margem da competitividade e da concorrência. A regulação acaba muitas vezes por truncar potenciais concorrentes, limitando-os e tornando-os mais previsíveis.

 Alguns estudos tornam claro que a regulação arrefece o ambiente competitivo e redunda por essa via na possibilidade de vigorarem preços mais altos, por mais tempo, e na geração de menos bem-estar para os consumidores. Regular pode limitar as quantidades produzidas de bens ou serviços, que sem regulação estariam disponíveis, reduzindo o potencial de crescimento da economia e a inovação.

Mesmo a regulação que tem em vista apenas a defesa da concorrência nem sempre é eficaz. Pode-se sentir uma influência do governo que condiciona o nível de concorrência que poderia ser atingido. A relação entre o governo e as agências de regulação ainda não é de independência.

Muitas vezes, o governo, ao regular, deixa ainda a sua função de neutralidade. Impostos diferenciados entre produtos e alguma regulação podem ser formas do estado se comportar de forma paternalista. Algumas políticas visam distorcer os equilíbrios de mercado, tendo em vista moldar a produção ou condicionar as escolhas das pessoas, limitando-lhes o acesso a bens sobre os quais o estado tenha uma opinião menos positiva. A regulação impõe limites à liberdade individual.

Dimensões morais

Várias correntes de pensamento, de Tomás de Aquino a Montesquieu, acentuaram uma dimensão não diretamente económica do mercado: o mercado sublinha uma dimensão de justiça e proporciona a paz. Tomás de Aquino, na Suma Teológica, associa as compras e as vendas voluntárias à justiça comutativa. Nos “intercâmbios”, para usar a sua expressão, dá-se proporcionalmente aquilo que se recebe. O dinheiro ajuda a criar a exatidão destes movimentos que “se ajustam”, ou seja, que acabam por ser justos.

Claro que se alguém for o único vendedor de água, no meio do deserto, pode pedir pela água qualquer valor que o potencial comprador tenha. Mas, mesmo assim, esse preço alto pode muito bem ser justo: pode ter sido essa possibilidade (de vender a esse preço alto) que motivou um vendedor a enfrentar o desafio de se deslocar no meio do deserto com água. Mesmo do ponto de vista do comprador, o facto de ter alguém ali, disposto a vender-lhe água, também deveria ser de salutar. Sem esse vendedor, a sua situação seria certamente pior. A verdade é que a água, ali, vale mesmo mais do que nas margens de um lago onde haja água em abundância. Este raciocínio foi notado por John Locke, num texto de 1695 pouco conhecido e intitulado Venditio, sobre a ideia de “preço justo”.

Em situações com múltiplos participantes e preços de mercado gerados por interação, não há, porém, margem para comportamentos muito desviantes. Os preços são mais ou menos parecidos para os mesmos produtos e apenas uma situação de maior carência ou abundância momentânea pode gerar ganhos e perdas que tendem a não perdurar no tempo. Ao trocar uma coisa por outra, há um sentido de justiça relativa, que pode ser designada por comutativa, entre as coisas que se trocam. De um modo geral, ao trocar ou permutar, fazemo-lo com reciprocidade. No mercado aberto, ao trocar uma coisa por outra, significamos que o valor de cada uma dessas coisas é parecido. Aquilo que se obtém em troca não deve valer muito menos, nem muito mais.

Montesquieu continua nesta linha em que a exatidão da troca gera ideias de igualdade e justiça. O mercado é “a profissão dos iguais”, assinala. Mas associa o mercado ainda aos “brandos costumes” que resultam da observação das maneiras de outros povos com quem se pretende estabelecer uma relação comercial. As visitas a outros sítios longínquos seriam uma forma de estimular comparações, o que apaziguaria os traços mais vincados dos nossos costumes. Daríamos assim mais latitude aos costumes e rituais ao termos de encontrar formas de negociar com pessoas com outros costumes.

Essa forma de estar mais flexível em relação aos outros, que então podem ser percecionados como “clientes” dos nossos produtos, acarreta uma implicação adicional: a paz. Para Montesquieu, como nos disse em 1748, povos que troquem produtos entre si, voluntariamente, entram numa forma de estar em que a expansão pretendida é comercial e fica assente em trocas voluntárias. Fréderic Bastiat, um século depois, irá seguir o tom de Montesquieu quanto à justeza e igualdade no mercado, mas acentua ainda mais a vertente de impacto nas relações internacionais: o mercado livre e internacional gera uma paz duradoura entre as nações. Ficou conhecido pela frase: “Quando os bens não passam fronteiras, passam os soldados.” Observando os vários indicadores comerciais de interligação comercial das economias das várias nações, esta é uma teoria que tem sido corroborada. A paz acontece entre países mais globalizados e mais abertos ao comércio internacional.

Karl Popper iria mais longe, associando ao mercado o surgimento da filosofia e da sociedade aberta. No capítulo 10 do primeiro volume do seu A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos, conta-nos que a inclinação marítima e comerciante de Atenas seria responsável pelo desencadear da atitude intelectual que nos levaria da grande geração de Sócrates ao despoletar da sociedade aberta, através da introdução da discussão racional e da ideia de democracia. Mas a verdade é que muitos filósofos clássicos, assim como certas ideias políticas que perduram ainda hoje, continuam a ser críticas dos comerciantes ou do mercado.

Desde o século XIX, com Friedrich List e o seu The National System of Political Economy, que a crítica ao mercado internacional livre passou a ter um estatuto académico. A sua defesa do protecionismo económico invoca por vezes uma dimensão moral, como sendo a proteção dos interesses nacionais, tentando limitar a influência ou dependência estrangeira. Conta-nos que planear a economia através de mecanismos políticos seria parte do desígnio de cada nação. Já em John Stuart Mill temos um argumento que visa a proteção das indústrias nascentes do país, mas apenas temporariamente. As indústrias “nascentes” precisariam de tempo para crescerem, para melhor se adaptarem à competitividade ou para melhorarem os seus produtos. Mais tarde, abrir-se-ia a economia aos produtos, naturalmente melhores ou mais baratos, vindos do estrangeiro.

A política protecionista tenta limitar a circulação de produtos vindos de outros países. Passa por estabelecer tarifas à entrada de produtos estrangeiros, ou estabelecer quotas máximas ao volume que poderia dar entrada. Mas também pode passar por atribuir subsídios aos produtores nacionais.

Os argumentos protecionistas têm reafirmado a necessidade de proteção também dos próprios trabalhadores mais expostos (muitas vezes os menos qualificados), assim como sublinham a importância de corrigir balanças nacionais em défice ou evitar os riscos de especialização excessiva. O protecionismo pode ser invocado ainda por razões estratégicas, nomeadamente, para podermos lidar melhor em situações de guerra ou de emergência. O mercado internacional livre, por seu turno, tem permitido aumentar o volume total de bens e serviços disponíveis. Gera melhorias na qualidade dos produtos através da competitividade, e acelera a massificação da produção, tornando todos os bens acessíveis a cada vez mais pessoas. Gera incentivos para que se baixem os custos de produção, concentra os esforços em torno das atividades onde os países têm vantagens comparativas, melhorando as formas de produzir, a eficácia, mobilizando os recursos de forma mais eficiente e com menos desperdícios. Por não distorcer o mercado em favor de agentes particulares nacionais, permite a fluição mais plena da informação, promove a inovação por via da especialização, permite descobertas e avanços científicos. O mercado livre expande os horizontes do conhecimento.

Conclusões

Um dos principais eixos de argumentação em torno dos efeitos gerais do mercado na sociedade foi-nos deixado por Friedrich Hayek. Tal como Carl Menger, a sua descrição sublinhou a dimensão epistemológica do mercado, na forma como este processa e revela o conhecimento circundante. Os sinais, símbolos e preços no mercado condensam informação que apenas é sugerida com a prática do mercado em andamento. Sem mercado, muita informação nunca seria conhecida. O mercado seria uma ordem espontânea, ou seja, um conjunto de arranjos emergentes pela ação humana descentralizada, indiciadores e geradores de ordem, mas que não foram designados ou projetados por alguém em particular. O mercado estaria a processar mais informação do que aquela que cada um possui individualmente.

Os indivíduos seriam orientados por esses sinais reveladores de informação, resultantes da interação entre todos, escolhendo os seus fins e adaptando os seus esforços. Tal como num jogo em que para o resultado final concorre uma mistura entre talentos e sorte, cada um dos “jogadores” vai tentando melhorar a sua condição, obedecendo a regras gerais e abstratas que são iguais para todos. Essas regras são reconhecidas na sua dimensão negativa: dizem-nos o que não podemos fazer (nomeadamente aos outros participantes no “jogo”), permitindo o que não estiver proibido. Cada um poderá escolher a sua melhor tática. Treinar mais ou treinar menos. Cada um traz consigo a sua própria sagacidade e os seus melhores conhecimentos. Todos desconhecem quer a sua exata posição futura, quer os resultados que irão obter. No final, o mercado revelar-se-á num conjunto de formas e aparências emergentes de um conjunto de escolhas feitas por particulares que nele se cruzaram.

Assim, tal como num jogo, uns vão marcando mais pontos que outros. O governo seria nesta analogia uma espécie de árbitro, que não joga o jogo nem marca pontos, apenas apitando quando alguém infringe uma regra geral. As regras ou leis não são escolhidas pelo árbitro do jogo: resultam de uma interação entre jogadores que foram notando que regras deveriam assumir e que regras deveriam descartar, tendo em vista o próprio jogo.

O mercado, por vezes, pode ser o símbolo da restrição ou daquilo que ainda não se consegue hoje ter. Há quem fale nos mercados como entidade responsável pelas restrições que sentem. Há quem associe ao mercado uma decisão una deliberada, como se “os mercados” tivessem vontade própria e agissem com propósito. Pelo contrário, as decisões no mercado são uma miríade de milhões de decisões simultâneas que se tornam compatíveis pela forma como preços e quantidades conspiram sinalizando aquilo que deveremos incentivar ou suavizar. O mercado, quando muito, mostra-nos a realidade: há escassez. E é pela realidade que teremos de toldar as escolhas, e demover-nos daquilo que gostaríamos de fazer. É a realidade que modifica aquilo que seriam as nossas próprias decisões. É a realidade que nos sugere, ou nos leva, a um ajustamento permanente. Parece que não temos influência alguma, mas vamos decidindo pouco a pouco, e o mercado vai-se ajustando a essa realidade. A questão é que o mercado apenas identifica e clarifica a situação. São as nossas ações que podem ir mudando aquilo que o mercado sinaliza sobre a realidade.  

Pela ausência de um impulso mobilizador ou de um propósito definido por alguém que o controle, o mercado é a expressão difusa, transversal e universal de pequenas partículas de energia, que cada uma das pessoas no mundo lhe aduz com as suas “pequenas” decisões, friccionando os equilíbrios marginalmente e contribuindo para os ajustes. Essa dispersão alarga-se a todos, tornando aquilo que seria fusco em invisível. É como termos átomos tão afastados que parece que desaparecem. Não havendo uma entidade com força que lhe permita manipular os equilíbrios, não há nada que se possa ver enquanto está a acontecer. Mas, pela forma ordenada que se obtém, parece que tudo foi movido, como que por uma mão invisível, aos restabelecimentos dos equilíbrios oscilantes e momentâneos.

Bibliografia

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Outros artigos

Interesse; Liberalismo; Libertarismo; Propriedade; Público/Privado


Como citar este artigo

Samões, O. “Mercado”. Dicionário de Filosofia Moral e Política (2022), 2.ª série, coord. António Marques e André Santos Campos. Lisboa: Instituto de Filosofia da Nova, URL: <http://www.dicionariofmp-ifilnova.pt/mercado>


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DOI: https://doi.org/10.34619/uf5n-prsv


Publicado em: 22 de novembro de 2022

Orlando Samões

Instituto de Estudos Políticos, Universidade Católica Portuguesa

<samoes@ucp.pt>