Libertarismo

O libertarismo é uma filosofia política que tem na liberdade individual o seu principal valor político e moral. Os partidários desta filosofia normalmente enfatizam a importância da liberdade de escolha e de associação, tal como a maximização da autonomia. Apesar de haver uma tradição libertária que vê na propriedade privada e no mercado livre obstáculos à liberdade individual, este artigo foca-se no libertarismo proprietário – uma versão particular da filosofia libertária que entende a propriedade privada como indispensável para a autonomia individual. Doravante, o termo libertarismo refere-se a esta versão.

O libertarismo pode ser entendido como um ramo específico do liberalismo. Em particular, é possível conceptualizar o libertarismo proprietário como uma rigorosa radicalização do liberalismo clássico, como um depurar de princípios liberais clássicos. Nomeadamente, o princípio da autopropriedade (self-ownership), o princípio da propriedade privada e o princípio da liberdade negativa. Esta liberdade reflete a ausência de interferência coerciva por parte de outros na esfera individual. Para o libertarismo, os indivíduos (e não os grupos) são primários, tanto do ponto de vista normativo como ontológico. Por conseguinte, a filosofia libertária vê o indivíduo como moralmente soberano e como a base de qualquer construção social. A filosofia em questão considera também que os indivíduos têm direitos que os protegem da interferência coerciva de outros. Na percepção libertária, só ações voluntárias são moralmente legítimas. O libertário entende a liberdade económica e os direitos de propriedade como sendo de extrema importância para uma sociedade justa. Neste sentido, o libertarismo assemelha-se a uma doutrina rigorosa de capitalismo laissez-faire.

Libertarismo de direitos naturais

O libertarismo pode ser justificado através de várias categorias morais e epistemológicas. Alguns libertários são consequencialistas por considerarem que as consequências da organização social libertária é a mais benéfica (Friedman 1989). Outros entendem a organização libertária como decorrente de um contrato social (Narveson 1988). Outros ainda preferem a tradição evolutiva da linha Hayekiana (Hayek 1973). Contudo, talvez a defesa mais influente dos princípios libertários seja feita através da evocação de direitos naturais numa base deontológica.

O libertarismo de direitos naturais assenta numa particular leitura do conteúdo da lei natural. Uma leitura que entende os indivíduos como possuidores de direitos de autopropriedade e de propriedade privada pela virtude do seu estatuto de humanos dotados de razão. Estes direitos protegem os indivíduos de ações coercivas por parte de terceiros que desrespeitam a autopropriedade ou a propriedade privada, ou seja, que desrespeitam a soberania individual. Apesar de ser possível encontrar formas semelhantes de conceptualização de direitos proprietários em escolas pré-modernas como a escolástica cristã da Escola de Salamanca, o libertarismo contemporâneo justifica-se frequentemente através da filosofia proprietária de uma das grandes figuras do liberalismo clássico: John Locke. 

Locke (1952) considerava que a lei não estava unicamente ligada ao Estado, mas sim que esta existia para além do Estado. Esta lei não-positiva é entendida como a lei natural onde todos os indivíduos são iguais e independentes e onde ninguém deve ser lesado no seu direito à vida, propriedade e liberdade (Locke 1952, par. 6). Tal como nas várias tradições de lei natural, Locke julgava que esta lei é passível de ser descoberta pela via da razão, isto é, por agentes racionais. Ademais, a consideração Lockeana de que o indivíduo tem uma propriedade em si mesmo está na base de um princípio basilar do libertarismo dos direitos naturais: o princípio da autopropriedade. Contudo, este libertarismo não considera apenas que o indivíduo é dono de si mesmo, entende também que o indivíduo é dono dos bens materiais que possui. Para justificarem os direitos de propriedade privada, o libertarismo dos direitos naturais recorre à justificação que Locke deu para o direito de propriedade de bens materiais. Nomeadamente, que o indivíduo ganha direitos de propriedade privada quando mistura o seu trabalho com a natureza. A lógica é a seguinte, se o indivíduo é dono de si mesmo e dono do seu trabalho, torna-se igualmente dono dos bens materiais que transforma através do seu trabalho. Contudo, Locke (1952, par. 27) colocou um limite neste processo de aquisição material. Ele alegou que a condição para o justo procedimento de aquisição é a de que cada proprietário deixe o suficiente em comum para outros.

Robert Nozick usou os direitos naturais proprietários de Locke como base para desenvolver a teoria libertária que mais impacto teve no âmbito académico. No seu livro Anarchy, State and Utopia (1974), Nozick tentou mostrar que a organização política mais adequada para a proteção dos direitos naturais proprietários é o Estado mínimo. Ele desafiou a teoria da justiça de John Rawls, em particular a ideia de seria necessário mais do que o Estado mínimo para garantir a justiça distributiva. A filosofia Nozickeana visa estabelecer uma estrutura política e moral para que os indivíduos possam perseguir as suas diferentes concepções de boa vida. Embora Nozick parta de uma base Lockeana, ele faz um argumento Kantiano ao defender os direitos naturais proprietários, alegando que só estes de facto tratam os indivíduos como fins e não apenas como meios. Para ele, teorias de justiça redistributivas padronizadas ou com fins-definidos à partida não podem ser justas porque violam a soberania dos indivíduos, tratando-os como meios e não como fins.

De acordo com Nozick, a distribuição de bens materiais só é justa quando respeita os procedimentos de justiça, neste caso, quando respeita os direitos naturais dos indivíduos. Em particular, a organização social apenas cumpre os preceitos de justiça quando a propriedade é adquirida pela via de um justo procedimento. Esta justa aquisição só pode acontecer através do fruto do trabalho em combinação com bens naturais ainda não apropriados ou através da troca comercial voluntária. Quando os procedimentos de justiça em aquisição são violados, Nozick sugere a criação de um mecanismo legal de rectificação histórica que compense os lesados. A justiça é assim entendida como um processo insensível às desigualdades materiais e sociais. Tudo o que é necessário para que uma ordem seja justa é que se cumpra procedimentos justos. Nozick ilustrou esta ideia com o famoso exemplo do basquetebolista Wilt Chamberlain. Se muitos pagarem bilhete para ver Chamberlain jogar, ele irá potencialmente acumular bens que o farão possuir uma riqueza desproporcional em relação aos demais. Contudo, tal resultado é justo, pois provém de um procedimento voluntário que cumpre os preceitos de justiça.

O papel do Estado

A visão libertária do papel do Estado é complexa. Por um lado há uma natural desconfiança do Estado como potencial transgressor de direitos individuais. Por outro lado, confiar no Estado para proteger os direitos individuais requere algum optimismo. Os libertários anarquistas não partilham deste optimismo e, quando deontológicos, encaram a mera existência do Estado como uma violação de direitos (Childs 1994; Rothbard 1982). O simples facto de que o Estado precisa de usar coerção para cobrar impostos é entendido como uma violação de direitos naturais proprietários. Ademais, através do monopólio da violência legal para efeitos de proteção, o Estado tende a proteger todos os que estão dentro do seu território (inclusive os que não contribuíram para tal proteção); logo, enceta um processo redistributivo que é injusto de uma perspectiva libertária.

A solução anarquista passa por entregar o sistema judicial e de segurança – tribunais e forças policiais – ao mercado livre. Vários teóricos libertários, como David Friedman (1989) e Murray Rothbard (1978, 1982), defendem que a lei e segurança podem ser produzidas pelo mercado livre e reguladas através do sistema de preços. A troca económica voluntária produziria estes bens ao melhor preço e com a melhor qualidade possível, tal como qualquer outro bem económico. Desta forma, seria possível preservar os direitos naturais proprietários e até atingir uma ordem social mais eficiente, com melhores serviços e uma melhor satisfação de preferências. Esta posição é muitas vezes identificada como anarco-capitalista.

Outros libertários consideram que o Estado mínimo – cuja função é a de proteger os direitos de propriedade – constitui a solução mais indicada para a realização da visão libertária. A filosofia social Nozickeana contempla uma explicação influente de como o Estado mínimo pode institucionalizar-se sem violar quaisquer direitos naturais proprietários, defendendo que o Estado mínimo é uma inevitabilidade para o libertarismo. Segundo Nozick, o estado de anarco-capitalismo levaria a que as agências privadas de segurança e lei criassem coligações ou colusões monopolistas devido às pressões competitivas de mercado ou à necessidade de evitar conflitos bélicos num determinado território. Estes monopólios seriam Estados de facto mas apenas se tornariam Estados legais quando proibissem o uso de força a empresas de segurança concorrentes. Nozick considera – de forma algo controversa – que a empresa de segurança monopolista deve proibir a competição securitária porque esta última cria riscos elevados para os direitos naturais proprietários. Assim, o Estado mínimo nasce legitimamente quando compensa todos os indivíduos no seu território com a oferta de proteção dos seus direitos naturais.

A teorização de Nozick foi bastante criticada por libertários anarquistas. Por exemplo, Rothbard (1977) considera que a existência de risco de violação de direitos naturais não é justificação para o proto-Estado violar esses mesmos direitos. Ademais, compensar os indivíduos pela falta de liberdade na escolha de agência protetora oferecendo-lhes uma proteção que eles não queriam em primeira instância será porventura ilegítimo (Childs 1977). No fim, a posição mais complicada será sempre a de justificar a existência do Estado perante o absolutismo moral dos direitos naturais proprietários. Nisto os anarco-capitalistas parecem mais sólidos. Contudo, permanecem sérias dúvidas sobre a viabilidade do modelo anarquista em cenários reais. Os alegados casos de anarco-capitalismo, tais como as instituições políticas na Islândia medieval (Friedman 1979), permanecem insuficientes para potenciar a popularidade do modelo anarquista.

O libertarismo como radicalização analítica

Independentemente das suas variações teóricas internas, o libertarismo proprietário baseia-se por regra em premissas de carácter moral e epistemológico sobre as quais são construídos edifícios teóricos normativos. Apesar da elegância exibida pela teoria libertária, o libertarismo proprietário tende a alienar todos aqueles que não aceitam as premissas bases. É possível ter autopropriedade? Misturar o nosso trabalho com bens da natureza dá direitos de propriedade? Estas questões são respondidas de formas muito distintas dentro e fora do âmbito libertário.

O libertarismo é objecto de críticas comuns como a de que a sua ontologia humana erra ao considerar os indivíduos como entidades últimas no processo normativo. Talvez a crítica mais comum seja a de que o libertarismo falha em não valorizar colectivos sociais como a família ou a comunidade, e como tal termina a teorizar sobre um mundo alternativo, surreal, que não representa nem pode representar o mundo em que vivemos. Contudo, o entendimento do indivíduo como entidade moral última não é algo particular do libertarismo, é sim uma característica central do liberalismo. O que é particular dos libertários proprietários é uma determinada rigorosidade na defesa da soberania individual, principalmente em relação ao Estado. Ao rejeitarem em larga medida a autoridade última da comunidade e do Estado, os libertários vêem as comunidades como uma mera associação voluntária, algo que levanta dúvidas em relação a esse entendimento de comunidade.

Contudo, um dos pontos fortes da filosofia libertária é o facto de levar a sério as consequências de considerarmos os indivíduos como soberanos morais. Os pensadores do libertarismo apresentam uma produtiva combinação interdisciplinar de filosofia, política e economia que permite um alcance analítico nem sempre presente noutras filosofias políticas. Como tal, o libertarismo proprietário tem a virtude de obrigar a pensar as premissas do liberalismo clássico através da sua radicalização, através do escrutínio das suas raízes. Neste sentido, a filosofia libertária contribui positivamente para os grandes debates em filosofia política contemporânea. 

Bibliografia

Childs, R. A. (1977), “The Invisible Hand Strikes Back”, Journal of Libertarian Studies, 1(1), 23-33.

Childs, R. A. (1994), “Objectivism and the State: An Open Letter to Ayn Rand”, In J. K. Taylor (Ed.), Liberty Against Power: Essays by Roy A. Childs, Jr. San Francisco, Fox and Wilkes.

Friedman, D. (1979), “Private Creation and Enforcement of Law: A Historical Case”, Journal of Legal Studies, 8(2), 399-415.

Friedman, D. (1989), The Machinery of Freedom: Guide to Radical Capitalism, La Salle, Open Court.

Hayek, F. A. (1973), Law, Legislation and Liberty, London, Routledge and Kegan Paul.

Locke, J. (1952), The Second Treatise of Government, New York, MacMillan.

Narveson, J. (1988), The Libertarian Idea, Philadelphia, Temple University Press.

Nozick, R. (1974), Anarchy, State, and Utopia, New York, Basic Books.

Rothbard, M. (1977), “Robert Nozick and the Immaculate Conception of the State”, Journal of Libertarian Studies, 1(1), 45–57.

Rothbard, M. (1978), For a New Liberty, New York, Collier.

Rothbard, M. (1982), The Ethics of Liberty, New Jersey, Humanities Press.


Outros artigos

Autonomia; Liberalismo; Liberdade; Propriedade


Como citar este artigo

Faria, F. N. “Libertarismo”. Dicionário de Filosofia Moral e Política (2019), 2.ª série, coord. António Marques e André Santos Campos. Lisboa: Instituto de Filosofia da Nova, URL: <http://www.dicionariofmp-ifilnova.pt/libertarismo>.


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DOI: http://doi.org/10.34619/3h3t-p341


Publicado em: 25 de Março de 2019


Filipe Nobre Faria

FCSH, Universidade Nova de Lisboa

<filipefaria@fcsh.unl.pt>