Legitimidade

A ideia de legitimidade remete para uma questão perene: os fundamentos da validade do poder. Trata-se, em boa verdade, de um problema versado desde a mitologia antiga. A desobediência de Antígona, que decide sepultar o seu irmão Polinices contra a ordem expressa do monarca Creonte, e a justificação desse acto apontando para a anterioridade e superioridade das leis divinas face às leis terrenas, constitui formulação paradigmática da questão. A preocupação com a legitimidade resulta da recusa da arbitrariedade do poder, cuja validade não pode depender unicamente da vontade dos governantes (Goyard-Fabre 1990: 235). Para evitar a discricionariedade-e e a desordem, exige-se que o poder político se subordine a um princípio que transcenda o capricho momentâneo dos seus titulares, seja ele uma imutável lei divina ou natural, a justiça, a promoção do bem comum ou o consentimento dos governados. Em sentido lato, pode dizer-se que o conceito de legitimidade subjaz a todo o pensamento político enquanto indagação sobre o problema da ordem e da aceitação desta tanto pelos governantes como, sobretudo, pelos governados. A história das ideias políticas seria, sob este ponto de vista, a história das ideias de legitimidade política, das respostas à exigência de justificação do poder e das hierarquias em que este necessariamente se traduz.

No presente ensaio, procuraremos, em primeiro lugar, reconstruir o caminho percorrido pelas palavras legítimo e legitimidade até à ideia de legitimidade política formulada na sua máxima amplitude. Com efeito, se esta, como vimos, pode ser retrospectivamente rastreada até a um longínquo passado mitológico, a verdade é que o uso dos termos legítimo e legitimidade, em sede quer de reflexão político-filosófica quer de polémica político-ideológica, não remonta além do século XVIII. Num segundo momento, tendo por base essa reconstrução histórico-filológica, faremos incidir o foco da análise na complexa relação entre as ideias de legitimidade e legalidade.

Síntese histórico-conceptual

O adjetivo legítimo descende do latim legitimus, que por sua vez deriva do substantivo lex (lei). No direito romano, designa-se por legitimus o que ocorre de acordo com a lei (Berger 1953: 543). No período medieval, porém, a palavra surge sobretudo no contexto mais restrito do direito canónico da família, apontando para a distinção entre a descendência legítima, gerada no âmbito do matrimónio cristão, e a que era fruto de relações extraconjugais. As implicações políticas desta acepção estrita de legitimidade fazem-se sentir nas lutas pela sucessão dinástica, nas quais as prescrições do direito canónico relativas ao casamento e à família passam a relevar para a resolução de disputas pelo trono (McDougall 2017).

Importa reter, pois, que o uso do qualificativo legitimus e dos seus descendentes vernaculares não remete, nem na literatura medieval nem sequer em boa parte dos autores tidos como fundadores da filosofia política moderna, para reflexão sobre as razões que, em última análise, conferem validade à ordem política. Não é de estranhar, pois, que Quentin Skinner (1978), no índice remissivo da sua síntese histórica das origens do pensamento político moderno, se tenha abstido de incluir qualquer entrada para legitimate, legitimation ou legitimacy. Na filosofia política de expressão inglesa do século XVII, não é ainda discernível o uso do adjectivo legitimate como referência à questão da validade dos regimes políticos. Tanto no Leviatã, de Thomas Hobbes, como nos Tratados do Governo Civil, de John Locke, é sobretudo a palavra lawful (e seus derivados) que surge em contexto de reflexão sobre a validade das instituições de governo e seu fundamento contratual. Quanto às – escassíssimas – ocorrências de legitimate nessas obras maiores do pensamento inglês de seiscentos, elas remetem para uma acepção ainda estritamente ‘hereditária’ do termo (Hobbes 1651: cap. XLVVII; Locke, 1824: I, cap. XI, §123). 

Com efeito, parece ser na língua francesa que a descendência do latim legitimus adquire um alcance semântico mais abrangente. Jean Bodin abre o caminho, no último dos Seis Livros da República, ao interpretar os três regimes rectos de Aristóteles como trois Républiques légitimes (Bodin 1993: VI, cap. IV). Mas é Jean-Jacques Rousseau, cerca de século e meio mais tarde, quem inequivocamente confere ao adjectivo o seu sentido eminentemente político-filosófico, emergindo como fundador moderno da distinção entre regimes legítimos e ilegítimos (Richter 1995). Logo a abrir O Contrato Social, o filósofo de Genebra faz-nos saber que procura uma regra de governo que seja «legítima e segura» (Rousseau 1963: 8). E um pouco mais adiante, estabelece como objectivo geral da obra compreender o que pode «tornar legítima» a passagem do estado de natureza para a ordem civil (Rousseau 1963: 9).

            Estas breves notas, de alcance mais filológico do que filosófico, permitem-nos mapear alguma da diversidade de significados que o conceito de legitimidade pode assumir:

            (i) A raiz etimológica sugere uma sobreposição plena do que é legal e do que é legítimo. Neste sentido, a legitimidade seria um problema do direito, mormente do direito positivo. A questão da validade do poder reduz-se, nesta perspectiva, à da sua conformidade com as normas jurídicas em vigor.

                (ii) O uso medieval do conceito revela-se ambivalente. Se, por um lado, a elevação do direito canónico da família a principal critério de resolução das disputas pela sucessão ao trono reforça um entendimento legalista da legitimidade, por outro lado, a ideia de hereditariedade chama a atenção para a questão mais ampla da durabilidade da ordem política para além do ciclo de vida dos titulares do poder.   

            (iii) O horizonte moderno traz consigo a emancipação filosófica do termo. O sentido de legitimidade aqui veiculado transcende o da conformidade com o direito positivo, uma vez que são os fundamentos últimos da validade desse mesmo direito – «os princípios do direito político», segundo o subtítulo d’O Contrato Social – que estão em causa. A legitimidade surge, assim, como questão de filosofia política por excelência.

Legitimidade e legitimismo

Ora, apesar da radicalidade filosófica e das implicações democráticas do uso rousseauniano do adjectivo légitime, a verdade é que o substantivo légitimité emerge, no contexto da Revolução Francesa, como palavra de ordem das forças tradicionalistas contra-revolucionárias. A legitimidade então evocada é a dinástica, por oposição ao princípio da soberania popular, e a manobra retórica visa reconduzir o sentido político-filosófico do termo à sua dimensão ‘hereditária’. Como afirma Louis de Bonald, «a primeira lei legítima e natural do estado político é a legitimidade da sucessão» (Bonald 1817: 170).

O cerne da ideia de legitimidade dinástica não se encontra, porém, na conformidade com o direito canónico da família, mas sim na sua capacidade para simbolizar a permanência da unidade política através das gerações de monarcas e súbditos. O monarca empresta o seu corpo à unidade política (Kantorowicz 1957), simbolizando-a e representando-a, mas para que esta transcenda a finitude daquele, torna-se imprescindível o concurso da hereditariedade. Nos seus Aforismos sobre o Estado, Friedrich Schleiermacher (1845: 225-226) considera o monarca eleito incapaz de cumprir essa função simbólica. O verdadeiro monarca deve elevar a ideia de unidade política acima da turbulência do devir histórico, o que, segundo Schleiermacher, está apenas ao alcance do monarca hereditário. A necessidade de extrair a pessoa do monarca das contingências da realidade histórica, alcandorando-a ao plano superior das ideias e símbolos, leva mesmo o filósofo alemão a considerar as vantagens da concessão do trono a dinastias estrangeiras, pois que estas estariam mais distantes dos eventos históricos que concretizam a ideia de unidade política e poderiam, por conseguinte, simbolizá-la de forma mais pura. No entanto, mesmo a mais ilustre das linhagens estrangeiras não lograria desfazer-se da sua ligação à história, carregando consigo um «resto mortal» (Voegelin 2003: 246) que contamina a pureza do símbolo. No limite, o monarca não é mais do que «representativo» (Schleiermacher 1845: 225) – e a representação não elimina o hiato entre ideia e símbolo.        

Ora, o nexo entre ideia e símbolo, ainda que tenda para a estabilidade, não é absolutamente fixo. A correspondência entre uma e o outro é abalada em períodos de transformação histórica, onde símbolos de ordem emergentes – e as forças sociais que os carregam – contestam os estabelecidos, eventualmente substituindo-os. Mas nem sempre os velhos símbolos desaparecem simplesmente de cena. Pelo contrário, não raro sobrevivem e transformam-se em busca de uma segunda juventude. É justamente o que sucede com a ideologia dita legitimista, que, enquanto reacção à ruptura revolucionária com o Antigo Regime, se declinou em oposição à ordem emergente e suas novas leis. Num contexto em que a ideia de legitimidade dinástica perde a auto-evidência, precisando de se reconstituir como ideologia, como mais um dos muitos ‘ismos’ da arena política moderna, o visconde de Bonald lamenta o fascínio mágico gerado pela palavra lei. Segundo o reaccionário gaulês, tal fascínio obscurece a diferença entre o que apelida de «estado legítimo», conforme à vontade divina inscrita na ordem natural, e o que chama de «estado legal», mero produto de uma vontade humana que se arroga o direito de subverter as leis divinas da natureza (Bonald 1817: 170).

Legalidade e legitimidade

Esta disjunção entre o que é legal e o que é legítimo está na base de um vasto debate que se estende até à actualidade. Para o pensamento contra-revolucionário, ela servia sobretudo o propósito retórico de sublinhar a ilegitimidade da Revolução, sendo que a restauração da monarquia sob o princípio dinástico voltaria a fazer convergir legalidade e legitimidade – convergência essa, que corresponderia à ordem divina e natural das coisas. Na transição do século XIX para o século XX, contudo, a relação entre legitimidade e legalidade adquire contornos mais complexos, vendo-se implicada na crescente diferenciação e autonomização de esferas da acção humana (direito, política, moral, religião, economia, etc.), bem como na fundamentação das ciências que se dedicam ao seu estudo.

Para o cientista social dos nossos dias, é bem provável que o conceito de legitimidade não remeta nem para Rousseau, nem para o idealismo alemão, nem mesmo para a doutrina da contra-revolução. A associação mais plausível é a tríade de tipos ideais de dominação legítima – carisma, tradição e legalidade – desenvolvida por Max Weber durante a década de 1910. Segundo Weber (1978: 953), que parte da «simples observação» e não de elucubrações sobre o sentido último do conceito, o problema da legitimidade remete para a ânsia por validação sentida, qual necessidade básica, por todo o ser humano minimamente privilegiado. Não mais nem menos do que qualquer pequena vantagem ou privilégio, a dominação política busca validação e justificação, querendo impor-se como ‘justa’, ‘merecida´ ou ‘correcta’ tanto aos olhos de quem domina como, sobretudo, de quem tem de obedecer. O sucesso das pretensões dos governantes em verem a sua autoridade reconhecida depende menos da consistência intrínseca dos seus argumentos do que da capacidade de suscitarem a adesão dos governados, de fomentarem a «crença» na validade do seu poder (Weber 1978: 213). Cabe, portanto, ao cientista social, em vez de emitir juízos de valor sobre as pretensões dos governantes, determinar se existe uma crença geral na legitimidade da ordem política vigente e em que é que ela se baseia. À primeira vista, Weber teria assim construído um conceito de legitimidade ‘operacionalizável’, permitindo à sociologia, enquanto ciência social empírica, evitar as areias movediças da teologia e filosofia políticas. Subsiste, porém, a incómoda questão da mensurabilidade da «crença na legitimidade». Exige-se que esta seja articulada, expressa em palavras e discurso, ou basta um reconhecimento tácito dos governados, inferido de rotinas de obediência, para estabelecer a existência de um credo generalizado na legitimidade da ordem política? Weber opta pela segunda alternativa e a consequência, apesar dos seus melhores esforços, é a interpretação da estabilidade política como evidência suficiente de uma crença geral na validade do regime em causa. Por outras palavras, a sociologia weberiana da dominação e da legitimidade, pelo menos na sua formulação tardia de pendor mais positivista, acaba por confundir eficácia com validade e esvaziar a dimensão normativa dos problemas que aborda (Grafstein 1981).    

Por outro lado, no que toca à relação entre legitimidade e legalidade, trata-se, para Weber, de conceitos situados em planos distintos de generalidade e abstracção. A legalidade é um dos três tipos ideais de dominação legítima, a par da tradição e do carisma; dela pode dizer-se que constitui a fonte caracteristicamente moderna de legitimidade, brotando da crença em normas de natureza abstracta e impessoal que marca a modernidade, enquanto a tradição, pelo contrário, seria o mais antigo dos tipos de legitimidade (Weber 1978: 37, 213). Do ponto de vista lógico, porém, conforme notam os mais argutos intérpretes de Weber, a prioridade vai para o carisma (Hanke 2001: 32). Este é a raiz e o ponto focal de toda a legitimidade, a grande força criativa e transformadora da história (Weber 1978: 1117) em comparação com a qual tanto a legalidade como a tradição surgem como produto derivado, como mera cristalização de uma necessariamente fugaz fundação carismática. Nesse sentido, a relação entre legalidade e legitimidade é marcada pela crescente distância da primeira relativamente às origens da segunda, estando o primado da legalidade racional associado à consolidação, para usar a mais célebre das metáforas weberianas, do casulo ou gaiola de ferro que ameaçam aprisionar o homem moderno (Weber 1992: 123). Se a legalidade racional constitui um tipo científico-social, essencialmente descritivo e, portanto, axiologicamente neutro, de dominação legítima, a sua hegemonia parece em todo o caso apontar, na grande narrativa weberiana da modernidade, para uma crise de legitimidade. A legalidade, para Weber, não se basta a si própria enquanto fonte de legitimidade. 

Uma perspectiva distinta emerge da chamada Teoria Pura do Direito, desenvolvida, também a partir da década de 1910, pelo jurista austríaco Hans Kelsen. Este, diga-se, não via incompatibilidade entre a sua empresa científica e a de Max Weber. A diferença entre ambos seria de ordem meramente metodológica: enquanto Weber pretendia descrever e explicar o fenómeno da (crença na) legitimidade através da lente de uma ciência empírica da interacção social, baseada no princípio da causalidade, Kelsen almejava erguer uma ciência normativa assente no princípio da imputação. As duas abordagens, da sociologia e do direito, poderiam e deveriam coexistir pacificamente, cada uma construindo com o seu método, como ensina a epistemologia neokantiana que inspira ambos os autores, o seu específico objecto. Porém, no que concerne ao binómio legitimidade-legalidade, para Kelsen só a segunda pode constituir objecto de conhecimento jurídico-científico, estando este restrito ao universo das normas positivas, caracterizadas pela sua coercibilidade. Segundo o positivismo jurídico kelseniano, a validade de uma qualquer norma positiva depende estritamente da sua imputabilidade a uma outra norma positiva, hierarquicamente superior. Saber o que legitima cada uma dessas normas para além da sua integração na cadeia de imputações que é o sistema jurídico constitui juízo de valor que extravasa não apenas o âmbito da ciência do direito, mas também o escopo do que é racionalmente cognoscível. O uso do conceito de legitimidade em sede de teoria do Estado e do direito – termos que, para Kelsen, são sinónimos – constitui, portanto, uma inaceitável intromissão do ideológico e do irracional na ciência jurídica (Kelsen 1934: 128). Para o jurista de Viena, a possibilidade de uma ciência do direito digna do nome – isto é, metodológica e epistemologicamente ao nível das ciências naturais – depende da sua capacidade de explicar o direito pelo direito, sem recurso a quaisquer princípios que o transcendam. A questão da legitimidade, tal como a da soberania, situa-se, portanto, fora da sua órbita.

Ora, a rejeição dos problemas da legitimidade e da soberania, a redução da teoria do Estado à ciência jurídica, e desta ao encadeamento lógico de normas positivas, têm de ser compreendidas à luz da crença inabalável de Kelsen na mundividência científica e no progresso que dela resulta. É essa crença, de resto, que em derradeira instância subjaz à sua defesa da democracia (Kelsen 1929: 89, n. 40). E é ela, igualmente, que o afasta da ambivalência da narrativa weberiana da modernidade e da tensão entre legitimidade e legalidade que dela resulta. Ao apartar estritamente as esferas do ser (Sein) e do dever (Sollen) – reduzindo, diga-se de passagem, a primeira a uma teoria anti-metafísica da experiência, segundo a interpretação coheniana de Kant (Kelsen 1929: 101, n. 45) –, Kelsen remete a legitimidade para a primeira e a legalidade para a segunda. Os mecanismos causais subjacentes à crença na legitimidade podem e devem, é certo, ser deslindados pelas ciências empíricas da sociologia e da psicologia, mas o conceito é irrelevante para uma ciência de conteúdo puramente normativo. Esta impermeabilização da esfera normativa e a visão restritiva dos problemas do Estado e do direito que dela emerge brotam, em última análise, da convicção profunda de que a ciência jurídico-normativa contribuiria tanto quanto as ciências da natureza – nas quais Kelsen inclui as ciências sociais empíricas – para a emancipação da humanidade.       

O normativismo de Kelsen foi objecto de crítica contundente por parte de Carl Schmitt. Em 1922, num opúsculo intitulado Teologia Política, Schmitt ataca a patente incapacidade do juspositivismo kelseniano para abarcar a ideia de um poder supremo que seja simultaneamente de jure e de facto, ou seja, a ideia de soberania. A reivindicação de uma ciência jurídica pura e autónoma leva Kelsen a ignorar a interpenetração de direito e política, do normativo e do factual. Segundo Schmitt, tal não é mais do que uma reiteração da velha recusa liberal de um Estado que transcenda o direito; recusa que, por sua vez, ignora a exigência, para que a ordem e o direito existam como propriedades da realidade social, de um momento instituidor de decisão que não é derivável de uma qualquer norma (Schmitt 2009: 26-29).

Uma década mais tarde, um escrito de pendor mais analítico do que teórico chamado Legalidade e Legitimidade, publicado por Schmitt no estertor da República de Weimar, vem expor à evidência as implicações de uma concepcão da soberania que subordina por completo o direito à política, a normatividade à facticidade (Schmitt 1932). O título desse estudo, curiosamente, fora sugerido a Schmitt por um ensaio homónimo de um dos seus mais brilhantes alunos, o marxista Otto Kirchheimer. Todavia, a interpretação que o conservador Schmitt faz da temática supera largamente, em teor ‘revolucionário’, a do socialista Kirchheimer. Enquanto este, com referência explícita a Weber, vê a tensão entre parlamento e presidente que marca o triénio final de Weimar como uma competição entre dois tipos de legitimidade, uma predominantemente legal-racional, a outra tendencialmente carismática, Schmitt postula uma oposição necessária e irreconciliável entre legalidade e legitimidade, isto é, entre a caduca legalidade da democracia parlamentar e a legitimidade plebiscitária do presidente do Reich. Por outras palavras, o que para Kirchheimer é do domínio do historicamente contingente, para Schmitt resulta como que aprioristicamente de uma oposição conceptual. Em boa verdade, Schmitt bebe mais da doutrina legitimista que tão bem conhecia, e à qual tentara dar nova vida no capítulo final da Teologia Política, do que da sóbria análise do seu aluno. Kirchheimer, aliás, estava bem ciente desse nexo, interpretando as defesas da autoridade plebiscitária do presidente do Reich contra o princípio da legalidade parlamentar justamente como uma reencenação da reacção absolutista (Kirchheimer 2017: 376). Opor a legitimidade – seja ela dinástica, plebiscitária, revolucionária ou outra – à mera legalidade constitui sempre manobra retórica subversiva, de combate à ordem instituída.

Conclusão

Tais manobras persistem até aos dias de hoje, ainda que raramente sejam levadas até às derradeiras consequências ou estejam sequer cientes destas. Uma busca por ‘Donald Trump illegitimate’ no Google permite ilustrar o ponto. Se quisermos um exemplo nacional, pensemos na tese da ilegitimidade da ‘geringonça’ propalada na sequência da formação do XXI Governo Constitucional. Qualquer que seja a posição do leitor sobre os referidos casos de imputação de ilegitimidade, esperamos que o itinerário traçado nestas páginas o tenha alertado para a complexidade do problema. Legalidade e legitimidade não são sinónimos, mas tão-pouco é frutífero pensá-las como conceitos rigidamente apartados e impermeáveis. A legitimidade não se reduz, certamente, à legalidade formal, mas tal não significa tão-pouco que tenhamos de concebê-las em diametral oposição, até porque essa oposição carrega consigo a ilusão de que uma transformação política radical poderia restituir-lhes a convergência plena. Em suma, a controvérsia em torno do binómio legalidade-legitimidade alerta-nos para a necessidade de pensar a relação entre direito e política em termos dinâmicos, atendendo à reciprocidade de influências, sem impor nem hierarquias simplistas nem contraposições forçadas.

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Autoridade; Democracia; Estado; Justiça; Poder Constituinte


Como citar este artigo

Magalhães, P. T. “Legitimidade”. Dicionário de Filosofia Moral e Política (2018), 2.ª série, coord. António Marques e André Santos Campos. Lisboa: Instituto de Filosofia da Nova, URL: <http://www.dicionariofmp-ifilnova.pt/legitimidade>.


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DOI: http://doi.org/10.34619/xng1-n132


Publicado em: 15 de Dezembro de 2018


Pedro T. Magalhães

University of Helsinki

<pmagalhaes_15@hotmail.com>