VERGONHA

A vergonha é uma impressão extraordinariamente primitiva e impactante no interior da experiência psicológica dos seres humanos. O imediatismo e a intimidade de uma impressão de desvantagem ante o olhar do Outro tem um papel de tal forma crítico logo naquele que é o primeiro reduto de socialização de cada um de nós – a família –, que qualquer esforço de elaboração teórica que se proponha compactar descritivamente os seus principais traços, exteriorizando verbalmente essa impressão fugaz, corre o risco do fracasso – dada essa mesma desproporção entre experiência vivida e respectiva conceptualização. Neste pequeno ensaio examina-se estruturalmente uma história filosófica deste conceito com ressonâncias morais indissociáveis, notando muito especialmente discrepâncias estruturais na definição da ideia (ou caracterização da experiência) e respectivas implicações práticas.

Na Ética a Nicómaco, Aristóteles refere amiúde a qualidade da vergonha (αίσχυνή) e a daquele que não tem vergonha – ou do comportamento desprovido de vergonha (αναισχυντία) (1107a11; 1128b31). No interior da sua teoria da virtude, que encontra uma genuína qualidade de carácter como um meio entre dois vícios, Aristóteles prescreve a vergonha como um teste ao desempenho virtuoso do agente moral, adscrevendo-lhe algo como um sentido profilático relativamente ao comportamento virtuoso e respectivas falhas ou rupturas momentâneas. A língua grega distingue ainda duas raízes terminológicas relevantes para o núcleo problemático ora tratado: (αίσχ-) e (αιδ-), e esta mesma bipartição indicia um hiato semântico que não passa despercebido nem no interior das complexas observações que Aristóteles faz ao longo do texto, nem em ressonâncias sobre um paradigma cultural muito comentado e disputado por antropólogos, filólogos clássicos e filósofos do passado século. Trata-se da chamada bipartição cultural, moral e até meta-moral, entre “culturas da vergonha” e “culturas da culpa” (Benedict 1946; Benedict 2005; Dodds 1950; Dodds 1968).

Sabe-se que a segunda raiz do termo era primariamente usada em língua grega para referir os caracteres sexuais (Williams 1993: 78) e, por isso, muitas das traduções correntes dessa dicotomia originária (mas não em língua inglesa, onde a separação não é viável) marcam uma divisão entre uma interpretação natural ou quási-fisiológica do termo e da experiência primaciais, e um sentido moral ou social. Quer dizer, fala-se em “vergonha natural” e distingue-se esta de uma “vergonha moral”. Como vários autores têm insistido, porém, não se trata aqui de diferentes tipologias de uma experiência subjectiva, mas de uma variabilidade gradual, cuja elaboração ou sofisticação última (de cunho moral) está ainda ancorada num sentido primário de desvantagem e desprotecção ante o olhar exterior que, em última análise, radica na experiência de exposição associada à nudez ou ao flagrante da nudez (Scheler 1957).

Também Aristóteles parece ter, não apenas uma consciência aguda desta separação, como até uma estranha sensibilidade para a respectiva maleabilidade conceptual e para transições graduais entre uma forma e outra da experiência de vergonha. Por um lado, os dois termos parecem ser usados de forma alternada no texto; por outro, a própria ressonância da conotação moral da experiência de vergonha, no sentido acima enunciado, enquadra mesmo os exemplos manejados que indiciariam um tipo de impressão relacionado com a forma natural de vergonha (ou pudor).

Um trecho do Livro IV da Ética a Nicómaco, em que é articulada uma tentativa de definição, contém o seguinte:

Acerca do pudor não pode dizer-se que se trata de uma certa excelência. Na verdade, parece-se mais com um sentimento do que com uma disposição de carácter. Ela é definida, pelo menos, como um certo medo da má reputação e produz um efeito próximo do medo em face do perigo. Só que enquanto os que se envergonham coram, os que se angustiam em face da morte empalidecem. Em ambos os casos, parece tratar-se de um certo fenómeno somático, por isso mesmo parece mais uma afectação do que uma disposição de carácter. (Aristóteles 2004: 116; 1128b10).

Desta fundamental passagem do Livro IV da Ética se depreendem duas importantes nuances: as raízes terminológicas acima explicitadas são usadas alternadamente e a interpretação de fenómenos conotados com a dimensão mais “naturalizante” da emoção entrelaça-se muito naturalmente com as respectivas conotações morais. Curiosamente, o elemento que proporciona esse cruzamento de aspectos é o critério descritivo da análise que Aristóteles leva a cabo – aliás, ao longo de todo o Livro IV.

Todas as remissões – naturalmente assumidas e até mesmo prescritas no interior de um quadro normativo –, assinaladas por Aristóteles ao longo do Livro IV da Ética a Nicómaco, deixam entrever um núcleo caracterológico da emoção que é extraordinariamente intuitivo e assumido não apenas em discussões correntes, como em problematizações morais e meta-morais muito mais próximas de nós.

Nos últimos cem anos, o quadro divisório de fundo no interior da filosofia europeia (entre escola analítica e a assim rotulada, pelos que dela se demarcam, “filosofia continental”), não deixou de lado uma correspondente cisão metodológica na problematização teórica das emoções. Em traços muito amplos, este tem sido um tópico maioritariamente discutido por fenomenólogos, por um lado, e por filósofos morais, por outro. É conhecida e amiúde citada, por representantes de ambas abordagens, a plástica ilustração do fenómeno de uma experiência pessoal de vergonha, oferecida por Jean-Paul Sartre em L’être et le neánt (Sartre 2014). Sartre imagina alguém que é flagrado a espiar pelo buraco de uma fechadura e é percorrido por um frisson de vergonha que – no interior do seu complexo modelo teórico – vem acoplado a uma súbita impressão de coisificação, implementada pela força do olhar humano. Qual Medusa, o olhar fixa e imobiliza simbolicamente o seu alvo, bloqueando a pura liberdade do sujeito que, assim, se vê destituído da sua inesgotável capacidade auto-criativa. Sartre, porém, não isola esta experiência e o complexo conjunto de considerações tecidas sobre a noção de vergonha (honte), com o fito explícito de propor um modelo interpretativo exclusivo para a emoção. A complexa descrição desta peculiar experiência, no cap. III de L’être et le néant, está estrategicamente inserida no interior de um ambiciosíssimo projecto de narrativa conceptual – à maneira totalizante dos sistemas filosóficos da Modernidade –, cuja “figura protagonista”, naturalmente herdada dos grandes modelos históricos do Idealismo Alemão, é a figura humana a que Sartre chama Pour Soi. É no interior de uma complexa descrição sobre a forma e o teor das estruturas intencionais do Pour Soi que Sartre chega a uma nova abertura constitutiva da consciência humana àquilo que ela não é – no caso, um outro sujeito (a este pólo visado pela consciência intencional individual chama Sartre Pour Autrui) –, e a desvelação desse momento fulgurante de certeza de si da própria consciência é ilustrada por uma experiência de vergonha.

Concentremo-nos no que Sartre escreve sobre esse preciso instante em que acontece uma nova forma de auto-apreensão, desviada pela consciência de outrem:

De súbito, tenho consciência de mim próprio como algo que me escapa – não porque sou o fundamento do meu próprio nada, mas porque o meu fundamento jaz fora de mim. […] A vergonha é apenas a impressão original de ter o meu ser fora de mim, comprometido com outro ser e, bem assim, sem nenhuma defesa. A pura vergonha não é a impressão de ser este ou aquele objecto culpado, mas, de forma geral, a impressão de se ser um objecto; ou seja, de me reconhecer neste ser degradado, fixo e dependente que sou para um Outro. (Sartre 2014: 328).

Sartre está aqui justamente a meio de uma complexíssima narrativa sobre a consciência humana, que concebe como uma forma de negação sistemática e permanentemente renovada. Após uma longuíssima introdução que desenha o propósito analítico de L’être et le néant como um todo, contextualizando a sua nova proposta de sistematização no interior da tradição fenomenológica desde os seus alvores – incluindo a respectiva dívida conceptual e problemática para com o sistema teórico de Kant (Sartre 2014: 11-33) –, de um longo capítulo introdutório sobre as origens da negação e de um outro capítulo sobre as estruturas do Pour-Soi, Sartre passa à exposição de um novo êxtase constitutivo da vida fáctica da consciência humana, determinado pela respectiva abertura necessária e forçada a uma outra consciência.

Atendendo à estrutura expositiva da obra e à necessidade de se manter fiel à descrição da experiência concreta, Sartre inaugura o próprio capítulo sobre o Pour Autrui com a enunciação de um problema filosófico ancestral, convertido em ponto de partida irrecusável das análises fenomenológicas do início do século XX – a ameaça de solipsismo –, e lança a respectiva proposta de solução com o exemplo muitíssimo plástico do voyeur. Este é o momento em que a famigerada situação de vergonha é introduzida, e é este o núcleo da sua contextualização problemática. Aquilo que é de crucial importância na referência a este momento analítico, isolado no interior da obra Sartriana, é salvaguardar que Sartre não faz uma análise exclusiva da emoção de vergonha, mas a descrição concreta da impressão e respectivo impacto subjectivo desempenham um papel mais amplo dentro da sua narrativa conceptual. Porém, a caracterização concreta de uma experiência de vergonha é ainda assim oferecida e esta tem sido amiúde usada como objecto de comparação teórica.

Optando por uma abordagem muito diferente à vergonha como um fenómeno cultural com ressonâncias éticas inequívocas, Bernard Williams será um dos filósofos mais emblemáticos da tradição analítica, a escrever na segunda metade do século XX, que tomará de empréstimo o exemplo de Sartre em L’être et le néant. Williams deu um conjunto de lições em Berkeley em 1989 – as prestigiosas Sather Classical Lectures –, publicadas em 1993 com o título Shame and Necessity, e é nesta obra, por muitos considerada como a sua obra filosófica mais importante (Williams 2006; Burnyeat 2006), que uma minuciosa análise da experiência de vergonha como um evento de teor psicológico e moral é oferecida. Tratando-se de uma obra (e de uma série de lições) votada a temas e autores da Antiguidade Clássica, Williams oferece um impressionante conjunto de análises de tópicos de filologia clássica, inserindo (ou extraindo) no âmago dessa discussão um modelo teórico muito engenhoso e culturalmente generalizável para pensar as implicações éticas e psicológicas de uma experiência de vergonha, individual e socialmente enquadrada.

Williams insere no interior de um exame crítico de algumas peças de Sófocles e de Eurípides, por um lado, e de uma exploração conceptual do núcleo terminológico relevante em Grego Antigo, por outro, uma definição experimental bastante compacta da experiência de vergonha como um fenómeno íntimo, indiciador de exposição e de privação, à vez. A mais relevante citação sobre o problema em pauta, extraída da IV Lição do volume, contém o seguinte:

A experiência básica ligada com a vergonha é a de se ser visto, inapropriadamente, pelas pessoas erradas, na condição errada. Está directamente relacionada com a nudez, particularmente em ligações com uma conotação sexual. A palavra aidoia,derivada de aidos, “vergonha”, é o termo grego usual para referir os genitais, e termos similares são encontrados em outras línguas. A reacção típica é cobrir-se ou esconder-se e as pessoas naturalmente tomam medidas que evitem a ocorrência de situações que desencadeiem a reacção. (Williams 1993: 78)

Williams entrelaça este quadro definitório simples, vinculado a aspectos de radicação terminológica arcaica, num modelo normativo que, de forma também esquemática (e até simplista, sob dado prisma comparativo), relaciona com termos e preceitos da ética Kantiana. O mais imediato propósito filosófico da sua análise nesta lição que intitulou “Shame and Autonomy” (Williams 1993: 75-102) é demarcar de forma crítica a experiência de vergonha de uma acusação de superficialidade moral que a ligaria a características de egoísmo e de heteronomia. Muito embora os termos escolhidos sejam muito relevantes para um conjunto de análises e modelos históricos com um teor intrinsecamente normativo, Williams pauta a sua demarcação da crítica hipostasiada à típica experiência de vergonha por um conjunto de características essencialmente estéticas. Quer dizer: falando embora de “egoísmo” e de “heteronomia”, Williams pensa numa experiência de exposição visualmente desvantajosa para o sujeito da mesma, ante a consideração desfavorável de outrem. Ora, uma vez que o sentimento de vergonha está fundamentalmente conectado com a experiência de exposição desvantajosa da minha aparência, os valores em jogo são superficiais, e superficiais num duplo sentido: na medida em que a experiência básica está relacionada com a aparência física, é a valoração do externo que prevalece; por essa mesma razão, a experiência pode ser descrita como uma falha de apreciação do valor intrínseco da pessoa, que é suplantado pela valoração imediata do aparente. Sendo assim, prossegue Williams – imaginando a linha de argumentação kantiana que quereria desconstruir –, a experiência tem um valor heterónomo, porque a impressão de desvantagem remete-me ao olhar crítico do outro e nada mais; porque a impressão de desvantagem é meramente subjectiva, a experiência é egoísta e carece da universalização definitória da acção ética no paradigma prático kantiano. De facto, estes dois traços definitórios complementam-se: uma acção egoísta é estruturalmente motivada por um desejo de sucesso individual e aclamação e, poderá alegar-se, essa motivação só tem sentido dado um enquadramento em que o sujeito acredita que é visto e aclamado. Claro: é perfeitamente concebível que o agente estipule objectivos e metas de realização para si mesmo, com suficiente independência de juízos heterónomos; porém, mesmo expectativas de realização pessoal claramente internalizadas têm de poder ser aprendidas e razoavelmente estruturadas enquanto padrões de autoavaliação ideal para chegarem a constituir-se enquanto medida do fracasso que produz uma reacção de vergonha. Portanto, conclui Williams, os mecanismos de vergonha não são estritamente egoístas nem estritamente heterónomos, mas residem numa linha intermédia de autoapreciação em que o juízo crítico é internalizado na psique individual, o que, curiosamente os destitui das conotações moralistas que os desautorizariam enquanto mecanismos morais.

Tal reapreciação dos mecanismos internos de actuação da emoção permitirá a Bernard Williams repensar as duas categorias intuitivamente escolhidas para definir a vergonha enquanto emoção moral. No interior da sua minuciosa análise, egoísmo e heteronomia serão reavaliados nos seguintes termos: uma experiência de vergonha não acontece apenas quando alguém é colocado face a face com o agente incitador de uma impressão de desvantagem pessoal ou de humilhação, mas tal pode acontecer ante um alter-ego não mais do que imaginário; por outro lado, o impacto da experiência de vergonha varia substancialmente com a identidade desse outro ante quem a impressão é, de facto, vivida. Ou seja, podemos facilmente sentir vergonha ante o elogio de alguém cujos valores colidem profundamente com os nossos e não sentir vergonha ante a crítica acérrima de um outro cujo comportamento ou tipologia ética profundamente desprezamos. Tal reconfiguração de uma conjuntura moral intuitivamente incitadora de uma reação de vergonha levaria em conta a hipostasiada crítica de heteronomia, dando-lhe uma nova espessura analítica.

Mas Williams pensa que também a crítica de egoísmo, em relação com um conjunto de experiências não restrito e intuitivamente incitador de uma impressão de vergonha, merece reconsideração. Ao contrário da generalização de uma quási-caricatural experiência de flagrante pessoal numa situação comprometedora, Williams enumera um conjunto de possíveis experiências incitadoras de vergonha, cuja variabilidade permite não apenas limitar a dimensão de choque inesperado inerente mesmo no exemplo criado por Sartre, como propor um modelo psicológico muito sofisticado. Num apêndice crítico de Shame and Necessity (Williams 1993: 219-225), é oferecido um modelo teórico que dá conta da sedimentação gradual de um conjunto de atitudes proporcionadoras de uma experiência de vergonha na psique individual.

Williams é um grande devedor da psicologia moral de Hume, e a sua proposta para descrever um modelo de internalização dessa impressão externa de “perda de poder” na mente humana tem uma base empirista que condiciona a formação de uma reacção mais estruturada a partir de microfenómenos rotineiros. O autor está particularmente interessado na internalização de uma figura de crítica, mas também na evolução de uma série de impressões de desvantagem ante esse olhar externo que, após repetição e maturação psicológica, plasmam uma reacção de vergonha, reconhecida como tal, nomeável e iterável. A formação dessa figura internalizada, ante a qual uma justificada e detalhada reacção de vergonha pode emergir para mim, mesmo sem nenhum índice da presença real do sujeito crítico assim replicado na psique individual permite assinalar uma cisão entre o sujeito que experimenta a reacção de vergonha e esse alter-ego crítico ante quem a impressão tem lugar. Ora, uma possibilidade mais sofisticada, no interior de tal modelo de construção psicológica, de conotar com egoísmo a experiência de vergonha assim vivida passaria por adscrever à instância de crítica alojada na mente individual um conjunto de reações ou expectativas que não emergem espontaneamente dessa figura, mas de mim próprio, sujeito da experiência de vergonha em questão. Williams considera essa espécie de mecanismo projectivo de valores individuais numa figura internalizada (ou directamente confrontada) como uma muito mais elaborada resposta moral, ante um conjunto de interações sociais e de respostas intersubjectivas bastante intuitivo e próximo da nossa verdadeira experiência no âmbito de uma comunidade humana moralmente amadurecida e calejada.

O mecanismo de internalização da instância de crítica na mente individual é extraordinariamente complexo (como, de resto, o são as críticas de Bernard Williams ao modelo de psicologia moral assim esboçado) e uma proposta teórica alternativa a esta concepção de tipo estritamente empirista foi traçada por um filósofo contemporâneo muito mais devedor da psicanálise freudiana – Richard Wollheim.

Em The Thread of Life, um conjunto de lições (as William James Lectures) ministradas em Harvard em 1982, Wollheim desenvolve uma narrativa filosófica difícil sobre a estruturação da pessoa individual, assumidamente devedora da psicanálise de Freud, e onde um modelo de internalização e profunda influência psicológica de poderosas figuras externas na vida íntima do indivíduo cobre também a experiência de vergonha. Num capítulo do livro intitulado “From Voices to Values: The Growth of the Moral Sense”, Wollheim apresenta uma perspectiva evolutiva, em termos das estruturas da psicologia profunda, sobre a transição paulatina de um narcisismo primitivo, de feição quási-paranoica e dependente de uma figura externa que exerceria um poder ilimitado sobre a criança, até à relativa autonomização do primeiro conjunto de respostas de teor individual, representativo do reconhecimento da cisão entre ego e alter-ego. Tal momento, assinalado como o ponto de formação da estrutura super-egóica, corresponderia, para Wollheim, justamente ao alvor do sentido moral e ligar-se-ia a uma transição de uma forma de culpa persecutória para um mais amadurecido (e tardio) sentido de vergonha. Wollheim reverte aqui alguns dos termos e preconceitos moralizantes da psicanálise clássica – sobretudo no que diz respeito ao reduto emocional mais relevante (vergonha e não culpa) –, mas fá-lo muito conscientemente e assumindo uma posição crítica ante o modelo freudiano (Wollheim 1984: 221).

Esta transformação da emoção base e respectivo conjunto de respostas e reações remonta a uma arqueologia da psique humana primitiva, mas igualmente à génese de dois padrões emocionais interdependentes – culpa e vergonha –, mesmo se correspondentes a momentos irreconciliáveis do processo de maturação psicológica do ego infantil. A alusão genética é particularmente relevante no interior deste modelo de psicologia moral, tal como o é a corajosa proposta de reversão temporal na formação de duas emoções morais basilares – e que justamente assinala a importância crucial da experiência de vergonha.

Richard Wollheim apresenta assim uma interpretação provocadora da génese possível do sentido moral no indivíduo e na célula comunitária primacial, que muito inspirará Bernard Williams (Williams 1993: 215) e que reavalia o mérito moral da emoção de vergonha, sublinhando a sua fundamental importância para o amadurecimento pessoal, porquanto esta possibilita uma experiência ética que respeita a individualidade e todo um conjunto de idiossincrasias (incluindo idiossincrasias psicológicas) associadas ao agente que experimenta um episódio de vergonha ou que, por alguma razão, vive como um refém da emoção. Ambas abordagens têm a enorme vantagem prática de não apenas fornecer diagnósticos teoricamente exaustivos sobre o fenómeno, como de oferecer possíveis caminhos de saída e de exorcismo para o problema ético apresentado (Wollheim 1984: 220-21; Williams 1993: 219-25).

Bibliografia

Aristóteles (2004), Ética a Nicómaco, tradução, prefácio e notas de António de Castro Caeiro, Quetzal, Lisboa.

Benedict, R. (2005), The Crysanthemum and the Sword. Patterns of Japanese Culture, Houghton Mifflin Company, Boston, New York.

Dodds, E. (1968),The Greeks and the Irrational, University of California Press, Berkeley and Los Angeles.

Sartre, J-P. (2014), L’être et le néant. Essai d’ontologie phénoménologique, Gallimard, Paris, 1.ª ed. 1943.

Scheler, Max (1957), “Über Scham und Schamgefühl“, em Schriften aus dem Nachlass. Band 1: Zur Ethik und Erkenntnislehre, Francke Verlag, Bern.

Williams, B. (1993), Shame and Necessity, University of California Press, Berkeley, CA.

Williams, B. (2006), The Sense of the Past: Essays in the History of Philosophy, edited and with an introduction by Miles Burnyeat, Princeton University Press, Princeton, NJ.

Wollheim, R. (1984), The Thread of Life, Cambridge University Press, Cambridge.


Outros artigos

Culpa; Paixão; Reconhecimento; Virtude.


Como citar este artigo

Falcato, A. “Vergonha”. Dicionário de Filosofia Moral e Política (2020), 2.ª série, coord. António Marques e André Santos Campos. Lisboa: Instituto de Filosofia da Nova, URL: <http://www.dicionariofmp-ifilnova.pt/vergonha>


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DOI: https://doi.org/10.34619/gjma-1v26


Publicado em: 13 de Junho de 2020

Ana Falcato

FCSH, Universidade Nova de Lisboa

<anafalcato83@gmail.com>