tolerância

A tolerância é uma das ideias políticas que hoje identifica o modelo político vulgarmente designado como democracia liberal, marcado pela diversidade, pelo pluralismo e pelo secularismo. Apesar de bem enraizada, a ideia de tolerância que partilhamos hoje no plano cultural, religioso e político é singular e particularmente moderna: só no contexto da modernidade é que a começámos a usar fora dos seus contextos originais que nos chegaram do mundo antigo, muito mais próximos do rerum natura, que pouco sentido fariam se aplicados aos domínios da política ou da moral.

Tolerância: uma virtude moderna

Apesar da sua presença marcante na orientação e acomodação dos modos de vida contemporâneos, a tolerância é estranha ao catálogo das virtudes clássicas e também, por maioria de razão, ao das virtudes teologais. A ideia de tolerância que nos chega do mundo antigo é aquela que, ainda hoje, empregamos vulgarmente quando procuramos aferir a margem de erro de um cálculo, quando procuramos definir o rigor de um instrumento de medição, ou estipular a medida de uma pena, ou mesmo, quando nos referimos, por exemplo, em contexto médico ou farmacológico, à alteração da resposta normal de um organismo face ao uso prolongado de uma determinada substância ou terapêutica. Dizemos, portanto, que aquela pessoa não tolera certo medicamento, ou que a sanção deve contemplar alguma tolerância, ou que os resultados devem ser lidos com uma determinada margem de tolerância. Este é o entendimento antigo associado à raiz latina da palavra tolerância: tolerantia. Será só em plena modernidade que a tolerância ganhará todo um novo universo de sentido. Em bom rigor, a ideia da tolerância só se começará a autonomizar e a adquirir a sua forma moderna no contexto das guerras religiosas europeias dos séculos XVI e XVII. É aqui que ela ganha um significado especial, na medida em que servirá de corpo a um instrumento político conceptual que permitirá, não a solução definitiva do conflito, tanto no espaço como no tempo (quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est), mas a ultrapassagem do conflito: a tolerância não resolve a contenda religiosa, mas abre caminho à convivência pacífica no espaço público.

Historicamente, o pano de fundo que subjaz às primeiras formulações políticas fundadoras da ideia moderna de tolerância é o da conturbada Inglaterra seiscentista. E é com a memória deste longuíssimo período de guerras e perseguições, alimentadas pelo fanatismo religioso, que, em 1689, na sequência da Revolução Gloriosa, o parlamento inglês estabelece o Toleration Act, que se apresenta como um marco importante no alargamento e garantia da liberdade religiosa (muito embora se dirigisse apenas aos chamados “não-conformistas” e continuasse a excluir grupos como os católicos, os judeus e os ateus).

Os quase dois séculos que mediariam a Carta sobre a Tolerância, de John Locke, e a publicação do ensaio de John Stuart Mill Sobre a Liberdade constituem, em traços largos, o período da consolidação de uma filosofia política que ficaria genericamente conhecida como liberalismo. Note-se, que, no quadro desta nova forma de pensar o político, a tolerância não se reduz apenas a uma tentativa de controlo de danos de eventuais conflictos resultantes do exercício de diferentes liberdades individuais – o que, só por si, é já uma realidade exponencialmente maior que o simples exercício da liberdade por pessoas diferentes. A tolerância começa a assumir-se como um valor político de primeira importância no contexto de uma Europa que, dilacerada pelas guerras religiosas internas e não alcançando uma paz ditada por um vencedor, opta por um acordo de cessar-fogo. É neste sentido, aliás, que Christopher Hill sustentará que, “[h]istoricamente, a tolerância é uma prática, mais que uma teoria” (Hill 1999: 27).

Liberdade e tolerância: fé e rito

Embora os primeiros liberais talvez nunca tenham pretendido erguer a tolerância ao estatuto de valor primeiro, parecem ter compreendido a sua importância e a necessidade de a procurar enraizar enquanto prática social. Isto é, parecem ter percebido que a própria liberdade, enquanto valor absoluto, não está assegurada se não for garantida aos indivíduos a tolerância necessária à livre prossecução dos seus próprios fins. Esta é, no fundo, a conclusão a que John Locke chega no final da sua Carta sobre a Tolerância: “A conclusão final a que chegamos é esta, que cada homem possa gozar os mesmos direitos que são concedidos aos outros.”[1] Seria também esta a convicção profunda de Mill que, paralelamente à sua defesa consistente da causa da liberdade, jamais perde de vista que esta nunca estará garantida, enquanto garantida não estiver a tolerância que lhe é indissociável e indispensável.

Contudo, a justificação da tolerância não é, em Locke e em Mill, da mesma natureza. No quadro lockeano, a justificação parte da atribuição a cada pessoa, individualmente, da responsabilidade pela salvação da sua alma, e, por consequência, confere a cada um o direito de colocar na prática essa responsabilidade individual da forma que melhor lhe aprouver. Mais preocupada com a liberdade religiosa e com a liberdade de culto, esta é uma concepção de raiz teológica. De alguma forma, Locke procura proteger a liberdade de consciência, mas não a de pensamento ou de expressão – pelo menos, não da forma muito mais abrangente como Mill as entendia. A consciência, em Locke, ficaria bastante limitada à consciência religiosa – o que justificaria, aliás, a exclusão dos não crentes, dos ateus, do âmbito da tolerância. O que, obviamente, não acontece em Mill. Para Mill, afinal, é a própria ideia de tolerância que dá corpo ao seu entendimento sobre a liberdade – o que se torna claro quando assevera que “a única liberdade merecedora do nome é a de prosseguirmos o nosso próprio bem à nossa própria maneira, conquanto não tentemos privar os outros das deles, ou impedir os seus esforços para as alcançarem” (Mill 1991: 17).

Mais em linha com a posição de Mill, embora cronologicamente mais próxima de Locke, estaria Espinosa, que assume a liberdade de pensamento e de expressão, a libertas philosophandi, como elemento central do seu sistema teológico-político. É neste sentido que Jonathan Israel, sugere que “os dois Iluminismos forjaram poderosas noções de tolerância, embora contrastantes” (Israel 2001: 265).Formalmente, a ideia de tolerância que extraímos de Mill parece mais próxima das ideias de Espinosa; porém, do ponto de vista da prática política, não se encontra em Mill o mesmo tipo de desejo de controlo e de redução do poder das Igrejas – sobretudo das de maior dimensão – que encontramos em Espinosa. Muito menos do seu controlo pelo aparelho do Estado.

Num plano diferente, ainda que muito ligada à questão da religião, partiria de Voltaire uma das primeiras tentativas de definir esta nova vida da palavra, que ficou imortalizada no Dicionário Filosófico: “A tolerância é o apanágio da Humanidade”. Algo misteriosa e, aparentemente, pouco consequente, a definição talvez diga mais sobre o seu autor do que sobre a ideia de tolerância em si. Voltaire não será o mais sistemático dos pensadores, e muitos até o veriam mais como dramaturgo que como filósofo, mas isso não o inibiu de avançar, a partir do dito apanágio, a primeira lei da natureza: que manda “que nos perdoemos, reciprocamente, as nossas tolices”. A reciprocidade (elemento fundamental na reflexão contemporânea sobre a tolerância) desempenha aqui um papel fundamental, e decorre da universalidade da razão e da crença no progresso da humanidade. O que Voltaire parece não admitir é a possibilidade de pessoas inteiramente racionais, alegadamente despidas de quaisquer preconceitos, reclamarem a tolerância sem aceitarem submeter-se às regras da reciprocidade. Como diria A. J. Ayer, Voltaire não antecipa o desacordo dos “homens racionais […] uns com os outros” (Ayer 1986: 171). O optimismo liberal de setecentos, apesar de ter de lidar com os excessos brutais das guerras fratricidas em nome de crenças absolutas, não antecipa que uma maior ameaça à tolerância possa vir não da crença, mas da descrença, da indiferença, da apatia.

Da diferença à indiferença e à apatia

A tolerância liberal é uma ideia que nasce do reconhecimento das diferenças profundas, nomeadamente no contexto das guerras religiosas europeias dos séculos XVI e XVII, e, como tal, da necessidade do estabelecimento de compromissos com vista à garantia da possibilidade de florescimento de formas de vida, eventualmente heterogéneas, num espaço de coexistência pacífica e ordeira. Nos últimos cem anos, porém, o liberalismo contemporâneo tem vindo a ser dominado não apenas por uma profunda secularização da sociedade, mas também por uma cada vez maior neutralidade de valores. Em suma, se numa fase inicial do liberalismo poderíamos falar em problemas resultantes da afirmação de diferenças, nesta fase tardia do liberalismo a nota dominante parece ser a da indiferença. A tolerância que antes era uma resposta à diferença, é agora equacionada com a indiferença. Acontece que a indiferença é, em si mesma, uma ausência de resposta.

Perante a diferença podemos sentir simpatia, nomeadamente se ela nos for agradável, ou, mesmo não o sendo, se conseguirmos sentir ou compreender o porquê da diferença. Mas a diferença também pode ser desagradável, pode ser incómoda, ou mesmo intransponível, e, nesse sentido, poderemos sentir antipatia. Porém, quando, embora reconhecendo a diferença, ela não nos provoca nem simpatia nem antipatia, então entramos no domínio da apatia. E esta apatia consistirá, então, na ausência de sentimento reactivo face à diferença. Esta distinção é importante, mas subtil: a indiferença traduz a ausência de diferença; a apatia traduz a ausência de pathos, de sentido.

A questão da tolerância não se confunde com a mera apatia, que George Carey, antigo Arcebispo de Cantuária, designa como “letargia da indiferença mental ou moral”. Para Carey, não só “a indiferença não é tolerância” como “a verdadeira tolerância implica convicções e valores profundamente enraizados” (Carey 1999: 46-47). E é aqui que descobrimos o cerne político do problema na medida em que, quando procuramos aplicar esta teoria a sociedades que herdaram de Locke a semente do individualismo, mas que prescindiram da dimensão religiosa que lhes era fundamental, o argumento falha. Nomeadamente, porque a lógica individualista que está na base das sociedades pós-religiosas não é já uma que procura defender a diferença religiosa, mas a simples indiferença (ou, em sentido mais próprio, apatia) face à própria religião. E, numa lógica de indiferença, prescindindo da tolerância, as posições tendem a extremar-se entre a permissividade e a proibição: ou tudo é aceite, ou tudo pode ser alegado para restringir a tolerância do outro.

Em todo o caso, o argumento lockeano repousa sobre um valor acima de qualquer outro. É esse valor que confere valor à tolerância. Isto é, a tolerância em si, despojada do seu propósito último, seria destituída de qualquer valor. Se retirarmos o peso deste valor, se excluirmos o propósito último da salvação da lógica da tolerância, ela perde todo o seu fundamento. E por isso mesmo, em sociedades como as democracias-liberais contemporâneas, tantas vezes designadas como pós-religiosas, esta lógica interna à defesa da tolerância tende a perder o seu sentido e, o que será mais grave, tende a transformar-se em mera indiferença.

No extremo oposto da indiferença, estas mesmas sociedades têm-se visto confrontadas com a cada vez maior exigência positiva de “aceitação e respeito” por parte daqueles para quem a mera tolerância não é já suficiente – ou é mesmo, em certos casos, considerada ofensiva. A mera concessão da liberdade já não parece suficiente – exige-se a igualdade – ou, na linguagem de Voltaire, exige-se a reciprocidade.

A tolerância sob a ameaça do vazio da neutralidade

As democracias-liberais contemporâneas, que são, muito provavelmente, os exemplos concretos de sociedades humanas em que as pessoas que nelas vivem gozam do catálogo mais amplo de liberdades individuais, têm vindo a assistir a um fenómeno relativamente paradoxal em que grupos ou comunidades que se entendem como tolerados não consideram a tolerância suficiente – e, por maioria de razão, muito menos o considerariam a mera apatia. Pelo contrário, exigem mais do que uma atitude de tolerância, chegando mesmo a considerá-la ofensiva; parece que, recuperando a reciprocidade implícita na primeira Lei na Natureza de Voltaire, o que agora se exige é a aceitação plena, um reconhecimento pleno, uma relação de plena reciprocidade. Aquilo que se pretende aqui é uma relação de plena igualdade. Mas, entre iguais, a tolerância deixa de fazer sentido. A tolerância fará sentido entre diferentes; entre iguais é logicamente impossível ou meramente irrelevante.

A lógica da neutralidade do chamado novo-liberalismo procura usar a tolerância para se escapar aos julgamentos valorativos. Porém, não só a tolerância faz sentido apenas num quadro de fortes julgamentos de valor, como a própria ideia de tolerância só surge como consequência da nossa capacidade para fazer tais julgamentos e distinções. As políticas liberais de tolerância são, precisamente, uma resposta e uma homenagem a essa capacidade demonstrada de ultrapassar essas dificuldades. 

O igualitarismo que subjaz ao chamado novo-liberalismo, traz consigo um fundo igualitarista que, não encarando frontalmente a diferença, nem querendo emitir qualquer juízo de valor, nem incentivar ou privilegiar ou desfavorecer qualquer forma de vida, acaba por se refugiar numa neutralidade que tem como consequência um individualismo oco e alheado, e, em última análise, o esvaziamento do próprio tecido moral destas sociedades que se ergueram em nome destas ideias, filhas das Luzes, de que cada seria autor da sua vida, capitão da sua alma, senhor do seu próprio destino. E, com esse esvaziamento, esvaziam-se também os laços sociais, que se dissolvem, colocando em risco a própria noção de vida em comum. John Gray denunciou muito bem este fenómeno: “O ideal liberal da neutralidade é, de facto, uma exigência que tem em vista o desestabelecimento legal das tradições culturais, o que significa uma negação do reconhecimento legal de formas de vida distintivas” (Gray 1995: 137). Gerada por um liberalismo que floresceu na diversidade, a ideia de tolerância que inicialmente procurou responder à diferença vai-se hoje esvaziando numa neutralidade desenraizada e apática.


[1] No original: “The Sum of all we drive at is, That every Man may enjoy the same Rights that are granted to others” (Locke 1983: 53).

Bibliografia

Ayer, A. J. (1986), Voltaire, Random House, New York.

Carey, G. (1999), “Tolerating Religion”, in Mendus, S. (ed.), The Politics of Toleration. Tolerance and Intolerance in Modern Life, Edinburgh University Press, Edinburgh, pp. 45-64.

Gray, J. (1995), Enlightenment‘s Wake: Politics and Culture at the Close of the Modern Age, Routledge, London.

Hill, Ch. (1999), Toleration in seventeenth-century England: theory and practice”, in Mendus, S. (ed.), The Politics of Toleration. Tolerance and Intolerance in Modern Life, Edinburgh University Press, Edinburgh, pp. 27-43.

Israel, J. I. (2001), Radical Enlightenment: Philosophy and the Making of Modernity 1650-1750, Oxford University Press, Oxford.

Locke, J. (1983), A Letter Concerning Toleration, ed. James H. Tully, Hackett, Indianapolis.

Mill, J. S. (1991), On Liberty, in On Liberty and Other Essays, Oxford University Press, Oxford.


Outros artigos

Humanismo; Liberalismo


Como citar este artigo

Branco, J. T. C. “Tolerância”. Dicionário de Filosofia Moral e Política (2024), 2.ª série, coord. António Marques e André Santos Campos. Lisboa: Instituto de Filosofia da Nova, URL: <http://www.dicionariofmp-ifilnova.pt/tolerancia>


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DOI: https://doi.org/10.34619/y7d5-kjsu


Publicado em: 11 de abril de 2024

José Tomaz Castello Branco

Instituto de Estudos Políticos, Universidade Católica Portuguesa

<jtcb@ucp.pt>