PARTIDO POLÍTICO

A existência dos partidos políticos como instrumento essencial para o funcionamento das democracias representativas é um fenómeno exclusivamente moderno que se contrapõe ao termo “partido” entendido como um mero grupo liderado por um chefe que luta pelo poder (Sartori 1976). De facto, na história política, sempre existiram grupos de indivíduos em competição para conquistar o poder fora de um contexto estruturado que regula o conflito político. Antes da afirmação das democracias representativas, o termo partido identificava-se essencialmente com a noção de facção – um grupo que ameaça a comunidade política e que luta, muitas vezes de forma violenta, para controlar os recursos. Deste ponto de vista, o partido político moderno diferencia-se da facção por ser uma parte funcional da comunidade. Esta separação entre partido e facção não é apenas conceptual, mas sobretudo prática, e emerge principalmente na esfera institucional, pois os partidos tornaram-se actores essenciais para a estruturação do conflito político. Por outras palavras, os partidos deixam de ser considerados enquanto ameaça para a sociedade, sendo reconhecido o contributo positivo que desempenham para o funcionamento das assembleias representativas e exercício do poder governamental.

O surgimento do partido político como fenómeno moderno coincide com as transformações da sociedade e a afirmação das democracias modernas. Primeiramente, os partidos permitiram a expressão do pluralismo político, isto é, a aceitação e o reconhecimento da necessidade do dissenso, da divergência e da contraposição entre maiorias e minorias. Com efeito, a estruturação dos partidos políticos no plano institucional foi essencial para articular as relações entre maioria de governo e oposição. Em segundo lugar, os partidos tornaram-se actores necessários para permitir a legitimação eleitoral dos cargos representativos e de governo, favorecendo a representação de todas as partes duma comunidade. Este aspecto está associado à afirmação do princípio da representação política como órgão colectivo – o parlamento – através do qual se exprime e é exercitada a soberania popular dos indivíduos. Neste sentido, a afirmação dos partidos políticos modernos beneficia (e, por sua vez, é consequência) da laicização da política e do princípio segundo o qual a legitimação da autoridade só pode ter origem na vontade expressa da sociedade, composta por indivíduos formalmente livres. Além disso, os partidos políticos tornam-se centrais para estruturar a articulação da dinâmica entre governo e parlamento, independentemente da configuração especifica da forma de governo (parlamentar ou presidencialista).

Historicamente, o laboratório prático da afirmação dos partidos políticos modernos é o parlamento inglês do século XVIII, com um partido de apoio ao governo e um partido (isto é, grupo parlamentar) de oposição. A primeira experiência de partido moderno assume a forma de um partido de elite (ou de notáveis, na expressão utilizada por Weber [1994]), que se desenvolve no contexto de uma democracia oligárquica em que a maioria da população ainda não tinha direito de voto e em que o sistema eleitoral (maioritário) favorecia a eleição de figuras com prestígio social e uma representação de tipo individual (Neumann 1956). A experiência prática destes partidos, particularmente em Inglaterra, com a afirmação dos Tories e dos Whigs, contribuiu para ultrapassar os preconceitos e as críticas dirigidas aos partidos, numa altura em que eram poucos os pensadores e observadores que consideravam a existência dos partidos como sendo compatível com a obtenção do bem comum.

O ponto a fixar é o de que os partidos modernos não se afirmam num vazio cultural, mas estão ancorados no pluralismo e liberalismo. Este aspecto é magistralmente capturado na definição de Burke (1889), na qual define os partidos como “um conjunto de homens que se juntam para promover, graças aos seus esforços conjuntos, o interesse nacional na base de um princípio particular que motivou a sua constituição”. Burke, juntamente com David Hume, é tido como pioneiro no reconhecimento dos partidos como actores legítimos (embora não necessários) para garantir que o poder dos governantes seja limitado e orientado para o “interesse nacional”. Segundo este ponto de vista, os partidos diferem pela forma como promovem os interesses da colectividade, mas ocupam um lugar único na arquitectura constitucional e na emergência do governo liberal.

É importante sublinhar que a associação do partido político à ideia do interesse nacional pressupõe uma mudança radical da teoria tradicional da legitimação política. A visão clássica da comunidade política considerava incompatíveis a existência de partidos – isto é, a possibilidade de existir uma diferenciação de opiniões – e o interesse geral da colectividade. Segundo vários autores, como Platão, Hobbes ou Rousseau, qualquer diferenciação interna é uma ameaça à unidade do corpo político e à ordem constituída, particularmente quando a legitimidade da autoridade política deriva da ordem divina ou de um princípio ou actor superior (de cima para baixo). No entanto, quando a legitimidade da autoridade tem origem de baixo, na vontade dos indivíduos que constituem o povo, e quando a sociedade se constitui como sociedade individualista, a diferenciação das opiniões e dos interesses encontra nos partidos o veículo e o canal essencial para dar origem ao governo representativo.

A perspectiva ontológica sobre os partidos políticos sublinha a existência de duas “faces” que constituem a natureza única e a essência destes actores. Por um lado, enquanto parte de um todo, os partidos podem ser considerados como grupos de interesse ou de poder, baseados em recursos políticos e incentivos materiais para distribuir pela colectividade, abrindo, assim, uma competição interna no seio dos seus inscritos. Qualquer teoria sobre partidos não pode ignorar, entre as motivações que dão origem à formação e à manutenção do partido, a ambição por parte dos líderes em adquirir e manter posições de poder. Foi Weber o primeiro a enfatizar este aspecto, considerando a emergência do político profissional que necessita do partido para garantir a sua carreira política. Deste ponto de vista, é importante olhar para os partidos modernos através da racionalidade dos actores individuais, uma perspectiva que tem encontrado eco, sobretudo, na tradição americana, em que o pragmatismo dos fins associados à acção dos partidos modernos e a ênfase na competição eleitoral constituem o eixo principal da análise deste fenómeno (ver, entre outros, Schumpeter 1948; Downs 1948).

Por outro lado, os partidos são agentes de agregação de preferências e interesses distintos, isto é, contribuem para fazer uma síntese das distintas visões da sociedade e propor planos de acção baseados em princípios coerentes ou ideologias estruturadas. Ademais, os partidos geram e moldam a identidade dos indivíduos e desempenham um importante papel de socialização. Deste ponto de vista, os partidos são actores que podem dar prioridade à lógica de “identidade” em detrimento da lógica de competição – esta é uma distinção que já tinha sido individuada por Hume e Tocqueville, que diferenciavam entre “partidos de interesses” e “partidos de princípios” (Hume 1871; Tocqueville 1839). Por outras palavras, os partidos procuram moldar as preferências dos indivíduos através da formação de identidades colectivas e, porque é suposto que cada indivíduo calcule benefícios e custos, através de uma identidade partidária (Pizzorno 1993). Estes dois aspectos são duas dimensões complementares da essência e da experiência concreta dos partidos.

Independentemente da sequência histórica – muito diferenciada – que caracteriza o processo de democratização e a formação dos sistemas de partidos das democracias representativas, o partido político acaba por desempenhar duas funções essenciais. Por um lado, torna-se uma estrutura de intermediação entre a sociedade civil e a esfera institucional. Por outro, desempenha uma função de coordenação entre as diferentes instituições – nomeadamente, entre poder legislativo e executivo – e entre o poder local e a autoridade nacional. Assim como uma assembleia representativa não pode funcionar sem princípios de organização estável e permanente, uma sociedade baseada na participação de massas e no exercício dos direitos políticos não pode desempenhar o seu papel sem actores que possam simplificar e estruturar as escolhas colectivas para multidões com interesses diferenciados e problemas cada vez mais complexos. É a partir da combinação destas duas funções essenciais que os partidos políticos se tornam indispensáveis para a democracia, uma tese defendida por vários autores clássicos. Bryce, por exemplo, afirmou que “nenhum (país livre) tem demonstrado como um governo representativo possa operar sem partidos. Estes actores criam a ordem a partir do caos da multidão de eleitores” (Bryce 1921: 119). Este argumento é também defendido por Schattschneider, que afirma que “os partidos criaram a democracia, a qual é impensável senão em termos de partidos” (Schattschneider 1942: 1).

Os partidos afirmaram-se, portanto, como elementos necessários para o funcionamento das democracias, não apenas para estruturar o circuito eleitoral (da selecção dos candidatos à formulação dos programas eleitorais), mas também para elaborar as políticas do governo e garantir a alternância no poder (oposição vs. maioria) e o correcto funcionamento das assembleias representativas. Contudo, nem todos os partidos se afirmam necessariamente como actores democráticos, tanto é que podemos encontrar na história muitos exemplos de partidos anti-democráticos ou anti-sistémicos (Sartori 1976: 132-133), ou seja, partidos de alguma forma disfuncionais à própria democracia. Neste sentido, as dinâmicas e constrangimentos associados à lógica das instituições representativas liberal-democráticas levaram os partidos, na maioria dos casos, a adaptar-se a estes vínculos externos, ou, então, a serem penalizados ou marginalizados dentro dos respectivos sistemas partidários.

Os partidos de massas alteraram a lógica da representação política, reflectindo e incorporando as transformações das sociedades industrializadas do fim do século XIX e da primeira metade do século XX: passaram a ter como objectivo o recrutamento e a mobilização de largos segmentos da população para a conquista de bens colectivos, e a afirmação de princípios gerais passou a ser traço comum a todos os partidos. Neste sentido, a extensão dos direitos democráticos é consequência da capacidade das massas em organizar-se através dos partidos políticos.

É com os partidos de massas que se afirma, também, a democracia partidária, entendida como um sistema institucional em que os eleitores são representados pelos candidatos selecionados pelos partidos na competição eleitoral, com base na apresentação de plataformas programáticas (Ranney 1954). Segundo este paradigma, a escolha entre programas alternativos deve estar associada a partidos “responsáveis”, isto é, que se comprometem perante os eleitores a realizar as suas políticas quando formam um governo, cuja acção terá de ser depois avaliada através do mecanismo eleitoral. Obviamente, os partidos diferenciam-se nas orientações ideológicas e na forma como propõem realizar os direitos políticos, sociais e civis. Considerando a experiência europeia até meados do século XX, Lipset e Rokkan (1967) individuaram duas “conjunturas críticas” (a revolução nacional e a revolução industrial) como momentos-chave em que se formaram os diferentes partidos, articulando fracturas políticas específicas. Os conflitos sócio-económicos e culturais que tiveram origem nestas conjunturas constituíram a génese das modernas “famílias partidárias”, termo que identifica um conjunto de partidos que partilham uma mesma cosmovisão (von Beyme 1985). É a partir das diferentes ideologias que emergiram, segundo a sequência histórica, os partidos liberais, conservadores, socialistas e social-democratas, da democracia-cristã, comunistas, agrários, etno-regionalistas e, a partir dos anos setenta do século XX, partidos ecologistas e da direita radical. 

No entanto, nem sempre os partidos aceitaram os princípios do pluralismo e da legitimidade eleitoral. Com efeito, o século XX caracterizou-se também pela emergência de outra variante do partido de massas – o partido totalitário, exemplificado no protótipo do partido bolchevique e, sucessivamente, nos partidos nazis e fascistas. Estes partidos baseiam-se no princípio da “integração total” dos filiados, completamente disciplinados e subordinados aos líderes partidários, e não aceitam visões alternativas da sociedade. Quando acedem ao poder, estes partidos totalitários de massas anulam ou eliminam os adversários políticos, instaurando, assim, um regime de partido único. Contudo, nem todos os regimes que assentam num só partido são baseados em partidos totalitários, podendo ser compatíveis com outros modelos organizativos (como os “partidos-estado” ou partidos de tipo religioso). A perspectiva de um “Estado-partido” e do partido como instrumento revolucionário será também desenvolvida por Gramsci (1975), que o considera não apenas uma força política mas um “príncipe moderno” capaz de moldar a vontade colectiva e conquistar a hegemonia política e cultural numa sociedade.

Segundo vários autores, o sucesso dos partidos de massas enquanto modelo “ideal” de organização dos partidos políticos baseia-se principalmente em dois aspectos. Do ponto de vista normativo, o partido de massas incorpora e reflecte o princípio de delegação da autoridade, sobre o qual se sustenta toda a arquitectura da democracia representativa. Por outras palavras, a organização do partido de massas sustenta-se na autorização dos representantes das estruturas de base em falar por conta da base do partido durante um período limitado (correspondente ao mandato), juntamente com mecanismos de responsabilização que asseguram a re-nomeação ou re-eleição dos dirigentes. O segundo aspecto consiste numa dimensão mais prática e empírica, e relaciona-se com o facto de os partidos de massas serem a configuração que melhor permite combinar as duas funções essenciais dos partidos: a mobilização e participação dos cidadãos, por um lado; a coordenação dos eleitos e governantes dentro das instituições representativas, por outro.

A força dos partidos de massas tornou-se, na prática, a fraqueza que levou ao declínio progressivo dos mesmos. Em primeiro lugar, a observação da acção dos partidos evidenciou que esta configuração era democrática apenas na aparência, na medida em que revelara tendências oligárquicas (Duverger 1964). Na óptica de Michels (1911), o problema estava na organização dos partidos de massas, que levava inevitavelmente à subordinação dos eleitores em relação aos eleitos e a processos de decisão não democráticos. A “lei férrea da oligarquia” implicava que os partidos, como instituições de massas necessárias para a representação política, constituíam um problema para a realização da democracia em larga escala. Em segundo lugar, emerge uma descaracterização ideológica dos partidos que são, cada vez mais, incapazes de produzir “grandes narrativas” e construções culturais e simbólicas que aspiram a explicar os problemas da sociedade (e a propor soluções). Como oportunamente observaram Katz e Mair (1995), os partidos de massas foram vítimas do próprio sucesso, pois as conquistas do estado social e a integração dos eleitores na esfera política tornaram estes partidos organizações obsoletas ou desnecessárias.

A evolução social económica e política do pós-Segunda Guerra Mundial levou a uma transformação dos partidos de massas no sentido de uma maior ênfase na competição eleitoral e na despolitização da mensagem política. As consequências desta evolução reflectiram-se principalmente na homogeneização das preferências e dos valores dos cidadãos, com a diminuição dos conflictos sociais e a estabilização das relações sociais. Além disso, a partir dos anos sessenta do século XX, como sublinharam os pensadores da pós-modernidade (ver, entre outros, Lyotard 1979), as relações entre indivíduos e a articulação entre opiniões e crenças individuais, por um lado, e a acção política, por outro, pautam-se por cada vez maior complexidade e fluidez. Kirchheimer (1966) foi pioneiro em descrever estas transformações das democracias de massas, sublinhando a emergência dos partidos “eleitorais” (catch-all parties), caracterizados pela centralização de poderes nos líderes, enfraquecimento do apelo ideológico, reforço da dependência (sobretudo financeira) em relação a grupos de interesse e marginalização dos filiados. Esta análise tem sido principalmente criticada por dois aspectos. O primeiro é que a definição deste modelo de partido é muito vaga e pouco precisa, sendo que esta categoria acaba por incluir partidos muito diferentes. A segunda é que pressupõe, como ponto de partida, o modelo de partido de massas, pelo que se trata de uma categoria “evolutiva”, construída a partir do desenvolvimento deste modelo organizativo específico. Na realidade, como demonstra a experiência dos países da terceira vaga, determinadas características do ambiente externo em que nascem os partidos podem ser responsáveis pelo surgimento de partidos que enfatizam a competição eleitoral independentemente da experiência anterior. Além disso, esta conceptualização não tem tido a capacidade de incorporar e explicar as recentes transformações que os partidos sofreram nas últimas décadas.

Transformações dos partidos políticos e desenvolvimentos recentes

Uma das transformações recentes que tem questionado o papel dos partidos nas democracias contemporâneas prende-se com o fenómeno da “cartelização”. Este termo identifica uma situação em que os principais partidos de governo colaboram para se apropriarem dos recursos do Estado e para excluir novos partidos que podem desafiar as posições institucionais adquiridas (Katz e Mair 1995). Deste ponto de vista, intensifica-se o afastamento destes partidos em relação à sociedade civil, ao mesmo tempo que reforçam a interpenetração nas estruturas do Estado. A crescente expansão do financiamento público, a “constitucionalização” das funções exercidas pelos partidos e a utilização dos meios públicos de comunicação são indicadores da modificação do papel dos partidos políticos, que passam a ser considerados como “agências estatais”. Estas transformações implicam uma mudança normativa do partido político, substituindo a legitimidade que provinha da sociedade civil com uma legitimidade do Estado. Além disso, a política partidária torna-se cada vez mais auto-referencial, isto é, os partidos que costumam ocupar posições de governo definem as regras a seu próprio favor, para tirar benefícios em detrimento de novos actores políticos. De igual modo, uma das características essenciais tradicionalmente assegurada pelos partidos – a competição partidária e a alternância no governo – é marginalizada. Os partidos que assumem responsabilidade executiva (ao nível nacional) aproximam-se nas soluções e nas políticas defendidas e apresentadas aos eleitores, limitando assim a capacidade de representar efectivamente os mais diversos sectores da sociedade e assegurar uma real alternância do poder. O surgimento de actores/instituições supra-estatais, como a União Europeia, assim como a crescente liberalização da economia, conduzem a dificuldades acrescidas no cumprimento de programas partidários. Como Katz e Mair afirmaram (1995: 23), “a democracia torna-se um meio para manter a estabilidade social, em vez de promover a mudança social, e as eleições tornam-se aspectos embalsamados das constituições… ou um ritual pacífico”.

As transformações da comunicação política e o surgimento de novas tecnologias digitais levaram também a um processo de hibridização dos partidos, no sentido de adquirirem cada vez mais aspectos que diluem a especificidade destes actores em relação a outros agentes de representação. Por exemplo, alguns partidos nasceram e desenvolveram-se a partir de iniciativas de líderes, frequentemente utilizando apenas recursos privados para o desempenho das suas funções e persecução dos objetivos principais. Estes partidos “pessoais” representam a “ponta do icebergue” do fenómeno cada vez mais difuso de “personalização” da política, acabando por intensificar a identificação entre partidos e líderes. Deste ponto de vista, acentuam-se os laços directos entre eleitores e líderes, bem como o carácter emotivo da política (Urbinati 2013). A comunicação política centra-se não apenas na empatia entre o eleitorado e o líder, como também na retórica e no entretenimento como instrumento de mobilização e de atracção do voto. Alguns partidos populistas de direita exemplificam estas tendências, como os casos do Partij voor de Vrijhei (Partido da Liberdade) de Wilders ou o partido Forza Italia de Berlusconi.

Outra tendência relevante é a diluição das fronteiras que separam partidos e movimentos sociais. De facto, alguns partidos (directa ou indirectamente inspirados aos partidos libertários dos anos setenta do século XX) têm utilizado as novas tecnologias de comunicação digital para reforçar os laços horizontais entre os filiados, bem como a deliberação dentro dos órgãos partidários e a relação com outros actores sociais. É possível encontrar exemplos deste fenómeno nos partidos de esquerda que emergiram, sobretudo, depois da crise económica de 2008, como a França Insubmissa ou o Podemos (em Espanha). Analogamente aos partidos-movimento que inovaram os modelos organizativos partidários na segunda metade do século XX (Kitschelt 2006), estes actores incentivam a participação individual, os valores pós-materialistas e a desburocratização ou “desprofissionalização” dos seus dirigentes. Por outro lado, acolhem e fazem um uso pleno das redes sociais, muitas vezes combinadas com uma retórica ou um estilo populista.

Finalmente, é também possível observar uma crescente relevância de partidos monotemáticos que emergem com base em temas ou políticas específicas. Estes partidos são consequência da maior individualização e fragmentação da sociedade e da dificuldade de os partidos unificarem porções do eleitorado a nível da classe social, ideologia ou identidade. Deste ponto de vista, os partidos continuam a desempenhar um papel importante de intermediação de interesses, mas dificilmente conseguem agregar sectores distintos da sociedade. Exemplos destes partidos são as forças de cariz regionalista ou os partidos que enfatizam uma mensagem anti-imigração ou anti-Europa, sobretudo os partidos eurocépticos criados no Norte da Europa ou na Europa de Leste. Na prática, estes actores tendem a diluir a distinção entre partidos políticos e grupos de interesse, pois revelam o mesmo ênfase num interesse específico que é partilhado por um sector limitado da sociedade. A democracia representativa assume traços mais parecidos com a democracia directa em que as escolhas dos eleitores se baseiam em problemas sectoriais. Altera-se, também, a perspectiva temporal da política, pois os partidos monotemáticos não articulam uma perspectiva passada, presente e futura (como no caso dos partidos num sentido “clássico” do termo), mas apenas uma visão de curto prazo e mais baseada na resolução de problemas imediatos, com uma delimitação temporal definida.

Recentemente, os partidos têm introduzido reformas internas no sentido de recuperar as ligações com a sociedade civil, procurando estimular uma maior participação e inclusividade. Por exemplo, vários partidos estenderam os direitos de voto a filiados e não filiados, através de eleições primárias ou referendos internos. Contudo, estas reformas parecem ter tido um impacto marginal ou irrelevante na política partidária. A avaliação negativa destas reformas prende-se com o facto de a democracia intra-partidária ser considerada à luz de uma concepção agregativa da democracia, em que a agregação das preferências individuais está na base da actividade dos regimes democráticos. Neste sentido, alguns observadores defendem a necessidade de reforçar a democracia intra-partidária através de mecanismos que incentivem a deliberação interna, tais como discussões regulares dentro das estruturas de base, reuniões sobre temas específicos que juntem vários órgãos partidários e o uso das novas tecnologias digitais para estimular o debate e preparar documentos de políticas (Teorrell 1999; Invernizzi-Accetti & Wolkenstein 2014). É, ainda, através da prática de deliberação que alguns teóricos justificam num plano normativo a importância dos partidos para a “razão pública” (Habermas 1996; Rawls 1993). Apesar de estas reformas procurarem adaptar as funções dos partidos às mudanças na estrutura do envolvimento cívico e serem compatíveis com uma concepção agregativa da democracia, não consideram o lado da oferta política, isto é, os interesses das elites políticas e a prioridade que os partidos colocam na defesa de interesses particulares em detrimento do bem comum. Deste ponto de vista, ainda permanece um grande cepticismo na capacidade da democracia intra-partidária e, em particular, da deliberação, em regenerar o papel dos partidos enquanto actores de intermediação entre sociedade civil e instituições representativas.

A visão predominante sobre o papel dos partidos ao virar do século XXI é a de que estes actores se tornaram cada vez menos representativos, agravando a capacidade de garantir legitimidade ao sistema político, em geral, e às instituições representativas, em particular (ver, entre outros, Dalton e Wattenberg 2000; Ignazi 2017, Katz e Mair 2018). Por outras palavras, os partidos perderam a capacidade de dar resposta aos problemas dos cidadãos e às mudanças da sociedade, concentrando-se, sobretudo, na função de governo e na ocupação dos sectores centrais do Estado. Estas transformações estão na base da crítica populista à democracia partidária, que sublinha a importância de colocar no centro da representação os interesses da maioria dos cidadãos (ver, entre outros, Laclau 2005). A reprovação em relação à elite corrupta e aos benefícios excessivos atribuídos aos partidos está associada, na óptica populista, à defesa da soberania popular e à “redescoberta” das preferências do “povo” (Mudde e Kaltwasser 2017). A contraposição entre elite e povo tem como consequência não apenas uma lógica anti-sistema e reformas radicais que podem desnaturar a essência da representação política, mas também um desafio ao funcionamento das democracias representativas pela dificuldade em aceitar a componente liberal sobre a qual se baseia a arquitectura democrática.

Contudo, esta visão populista tem ofuscado uma outra crítica: a crítica elitista à democracia representativa, segundo a qual os partidos têm adquirido uma maior capacidade de monitorizar a opinião pública e persuadir os eleitores. Na tentativa de melhorar o desempenho eleitoral e obter resultados positivos nas eleições, os partidos tendem a valorizar excessivamente as oscilações das opiniões dos cidadãos, produzindo políticas não eficientes (isto é, no sentido em que são considerados apenas os efeitos e benefícios do curto prazo), em detrimento das reformas que necessitam de mais tempo ou que podem ter um impacto negativo dentro do ciclo eleitoral. Segundo Manin (1997), esta tendência tem levado à emergência de uma “democracia de audiência”, na qual a competição política é cada vez mais personalizada, os cidadãos são apenas espectadores e o parlamento está subordinado ao governo (veja-se, também, Sartori 2004). O facto de os partidos actuarem como “máquinas eleitorais” e manipularem a opinião pública tem dado origem à defesa de um modelo de governação mais “tecnocrático” que possa melhorar a legitimidade dos resultados e que aumente a eficiência das políticas (ver Habermas 2015). As motivações para que os partidos adoptem uma visão tecnocrática são reforçadas por dois fenómenos paralelos. O primeiro reside na maior complexidade das decisões e na intervenção de actores externos, que reforçaram a política multi-nível e a consequente competência técnica das políticas. O segundo aspecto relaciona-se com a insatisfação dos cidadãos em relação aos resultados produzidos pelas democracias representativas, em particular o fraco desempenho económico (reforçado por períodos de recessões) que tem caracterizado as democracias avançadas nas últimas décadas.

O apelo tecnocrático dos partidos tem consequências relevantes quer para alterar a “essência” destes actores políticos, quer na sua acção prática e nas ligações com a sociedade civil. Por um lado, os partidos deixam de apresentar uma visão holística da sociedade e de propor alternativas para a agregação da pluralidade de interesses. De facto, uma das características que distingue a democracia representativa liberal da tecnocracia (e do populismo) é a escolha entre visões e propostas alternativas de políticas e das soluções consideradas boas para a sociedade. Por outro, os tecnocratas no governo tendem a adoptar políticas que não correspondem às preferências da maioria e a favorecer o consenso dos partidos. A implementação de medidas muitas vezes impopulares é possível pelo facto de os especialistas não serem responsáveis, nem perante os partidos, nem perante os eleitores. Deste ponto de vista, os partidos deixam de lado, também, uma das suas funções essenciais, isto é, a selecção de candidatos que são escolhidos pelos eleitores com base na sua competência e nas suas propostas políticas.

É certo que o processo de desintermediação da sociedade e as constantes (e rápidas) transformações tecnológicas acompanham igualmente a mudança dos partidos e o seu papel nas democracias representativas. Se alguns autores têm começado a teorizar a emergência de “ciber-partidos” ou “partidos-digitais” (Margetts 2006; Gerbaudo 2018), outros preferem parafrasear o termo de Bauman ao falar de “partidos líquidos”. Estes novos conceitos tendem sobretudo a enfatizar não apenas a personalização do discurso, mas também a flexibilidade ideológica, a fraca institucionalização e a incerteza dos processos de decisão.

Para concluir esta breve panorâmica sobre o que é um partido político, importa ressaltar três aspectos. O primeiro é que os partidos reflectem os contextos sociais, económicos e culturais nos quais emergem, apresentando formas organizativas, estratégias e plataformas programáticas muito distintas. O segundo aspecto, consequência directa das considerações anteriores, é que os partidos não evoluíram de forma linear e uniforme. Historicamente, podemos encontrar dinâmicas de continuidade e processos de adaptação lenta ou de rápida transformação. Terceiro e último aspecto: independentemente destas diferentes trajectórias, os partidos continuam a ser um elemento fundamental no funcionamento das democracias representativas.

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Outros artigos

Governo; Ideologia; Regimes Políticos


Como citar este artigo

Lisi, M. “Partido Político”. Dicionário de Filosofia Moral e Política (2018), 2.ª série, coord. António Marques e André Santos Campos. Lisboa: Instituto de Filosofia da Nova, URL: <http://www.dicionariofmp-ifilnova.pt/partido-politico>


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DOI: https://doi.org/10.34619/c59c-klwj


Publicado em: 17 de outubro de 2022


Marco Lisi

FCSH, Universidade Nova de Lisboa

<marcolisi@fcsh.unl.pt>