Cepticismo
Abordamos aqui dois aspectos da vasta temática do cepticismo no concernente aos campos da filosofia moral e da filosofia política. Em primeiro lugar, tratamos do específico contributo da orientação céptica, ou de autores que com ela lidaram, de uma perspectiva histórica, quer para a filosofia moral, quer para a filosofia política. Em segundo lugar, fazemos uma breve referência ao cepticismo moral propriamente dito, tal como hoje é correntemente entendido.
Pode-se dizer de um modo geral que o cepticismo filosófico foi, primeiro, na Antiguidade Helenística, Tardo-Helenística e Imperial, e, mais tarde, desde o Renascimento até à imposição do pensamento moderno, científico-racionalista, consagrado ao longo dos séculos XVII e XVIII, uma das correntes filosóficas mais frutíferas e produtivas no domínio da reflexão prática, tanto a nível da ética como, mesmo, da filosofia política, o que por vezes se minimiza, quando não se despreza. Tal característica contrasta marcadamente com o que se tornaria identificador da atitude céptica precisamente a partir de Descartes, cuja concepção extrema do cepticismo, feita de algum modo à medida de uma postura estruturalmente anticéptica destinada a superar definitivamente as dificuldades teóricas colocadas pelos cépticos, veio a influenciar de forma predominante a tradição posterior e a impôr uma imagem do cepticismo bem diferente da proporcionada pelas suas versões sustentadas pelos filósofos que até aí sobre ele tinham escrito ou de tal orientação se reclamavam. O cepticismo, ao reduzir-se progressivamente a uma posição teórica (para mais de âmbito universal) incompatível com a vida quotidiana, e na realidade, insustentável (ou, com clareza, tendente à insustentabilidade), se não como hipótese destinada a ser rebatida e superada (no que se retoma uma tradição remontando, pelo menos, a Santo Agostinho e culminando em Hegel), veio também cada vez mais a poder confundir-se com o que teremos de considerar como uma variante sua inexistente tanto na tradição antiga como na renascentista, a de um cepticismo absoluto e meramente teórico. Não se deverá, porém, subestimar o papel de uma forte orientação gnosiológica nas diversas variantes das filosofias cépticas pré-cartesianas a ponto de se perder a especificidade “identitária” de todos os cepticismos, tampouco ignorar a importância de que se reveste a presença constante de entre os argumentos levantados contra todas as formas de cepticismo da tradicional objecção anticéptica designável como a da apraxia. Consiste esta em apontar que um comportamento consistente e sistematicamente regido pela filosofia céptica contraria o senso comum e vem a conduzir de uma ou de outra maneira à inacção, tendo o céptico de optar entre a coerência doutrinal e a incompatibilidade da sua atitude com uma vida plenamente assumida no quotidiano. Do ponto de vista dos pensadores cépticos, que de resto replicaram à objecção de mais de um modo, a sua orientação filosófica não só se mostra compatível com a inserção no quotidiano como se revela mesmo plenamente adequada à obtenção de uma vida virtuosa, ou seja, à aquisição da vida feliz por parte do sábio.
Na Antiguidade a corrente que melhor e mais cabalmente sustentou, desenvolveu, aperfeiçoou e aprofundou uma filosofia de cariz céptico (sendo mesmo no seu seio e para a designar que se adoptaram os termos derivados de skepsis, que quer dizer em grego clássico “exame”) foi a do Pirronismo, assim nomeada a partir do filósofo que a iniciou, o helenístico Pírron de Élis, que na juventude integrou a expedição ao Oriente de Alexandre Magno. Nessa corrente distinguimos três fases principais (a do Pirronismo original, correspondente a Pírron de Élis e aos seus discípulos directos; a do neo-pirronismo enesidemiano, incluindo Enesidemo e mais tarde Agripa, e que é sobretudo conhecida pela sistematização dos modos argumentativos, ou tropoi, pirrónicos; e a do florescimento sextiano, a fase mais bem conhecida graças a ter sido transmitido à posteridade um bem preservado e avultado corpo de escritos do escolarca pirrónico do período que lhe corresponde, o filósofo e médico Sexto Empírico), bem demarcadas e cronologicamente apartadas, as quais são porém ligadas por alguns traços de união. Um dos principais desses traços consiste justamente na sobrelevada importância, se não predomínio, da componente da dimensão prática, apesar de diferentes definições desta e de alguma flutuação da sua importância relativa no cômputo global da filosofia em que se insere. O pirronismo primitivo, inserindo-se numa perspectiva de demanda eudemonista, de cujo objectivo a tranquilidade de espírito ou ataraxia é um elemento fundamental, possui a particularidade de, com base numa postura metafísica, sustentar que nem os sentidos nem as opiniões conduzem à verdade ou à mentira, e defender assim a ausência de opinião e de assentimento e a prática de um discurso contraditório:
[…] o seu [de Pírron] discípulo diz que quem quiser ser feliz, deve considerar três coisas: […] como são as coisas por natureza; […] qual deve ser a nossa disposição de ânimo em relação a elas, e por último, que advirá da disposição que tivermos adoptado. Diz que ele [Pírron] mostra que as coisas são igualmente indiferentes, instáveis e indecidíveis; pelo que, nem as nossas sensações nem as nossas opiniões dizem a verdade ou mentem. Não se deve, por conseguinte, confiar nelas, mas permanecer sem opinião, sem inclinação e sem abalos, dizendo acerca de qualquer coisa ou que ela não é isto mais que o deixa de ser, ou que é e não é, ou que nem é nem não é […]” [Aristocl. Ap. Eus. Praep. Ev. XIV 18, 14-15 (fr. 6 Heiland; fr.52 Decleva Caizzi)] (Romão 2003: 42) (original grego: Decleva Caizzi 1981: 54) (itálicos nossos).
Dir-se-ia estarmos perante uma rigorosa prática ascética fundamentada na tese da indiferença objectiva das coisas e da respectiva instabilidade como características da sua natureza. Se este pirronismo ainda parece bastante tingido de uma atitude a que posteriormente se associará a designação geral de dogmatismo, a habitual contraposição ao cepticismo, não se deixa, porém, de poder nele ler vários traços já inequivocamente de recorte céptico, de acordo com tal contraposição. Embora o sábio Pírron se pronuncie acerca da natureza das coisas (algo que será vedado aos Pirrónicos em Sexto Empírico) (Sextus Empiricus 1933: 10-11; P. H., I, vii, 13-15), fá-lo de uma tal maneira que possibilita que não se possa ter um discurso consequente a seu respeito, na medida em que, sendo as coisas “indiferentes, instáveis e indecidíveis”, acabarão elas também por se tornar incognoscíveis. Articula-se com esta tese gnoseológica de radicação ontológica quer a determinação do caminho a seguir pelo filósofo pirrónico quer a especificidade do seu discurso, que assimila a autocontradição e a prática de um exigente ideal de sabedoria. Não se pode aqui deixar de mencionar a importância histórica do cepticismo pirrónico, em especial a partir da sua reinvenção por parte de Michel de Montaigne, na determinação da filosofia política no período moderno. Não apenas os que podemos chamar de herdeiros directos do cepticismo montaniano, todos eles, de resto, autores de filosofias eivadas de elevado cunho pessoal, como Pierre Charron, Marie de Gournay e La Mothe Le Vayer, mas de igual modo os diversos outros autores de uma ou de outra forma ligados à corrente que, na esteira do estudo de René Pintard, seminal na área sobre que se debruça, tem sido apelidada a do libertinismo erudito, incluindo, entre outros, Guy de Naudé, Pierre Gassendi e Samuel Sorbière (Pintard 1943). Se um estudo suficientemente compreensivo da relação da tradição céptica, incluindo a pirrónica, com a problemática da filosofia política queda por fazer, deve-se ainda assim salientar de entre os parcelares que foram empreendidos o de John Christian Laursen sobre a política do cepticismo (Laursen 1992), nomeadamente por ser aquele que, de uma perspectiva informada pela filosofia política contemporânea, melhor explora algumas das questões que dentro do seu âmbito podem ser levantadas a propósito do pirronismo antigo, tal como exposto por Sexto Empírico, comparando-a com figuras emblemáticas da filosofia moderna.
O grupo de posições que hoje se costumam abrigar sob a designação geral de cepticismo moral propriamente dito partilha algum território comum com o relativismo meta-ético, mas dele acaba por se distinguir. Se ambos rejeitam valores éticos absolutos e verdades morais universais, fazem-no de maneiras e perspectivas diferentes. Enquanto o relativismo propõe a existência de múltiplas verdades ou códigos morais válidos, consoante variáveis relacionais, do ponto de vista do cepticismo, uma verdade moral objectiva quer una quer múltipla será ou inatingível ou desconhecida. Poder-se-ão ainda identificar variantes contemporâneas de cepticismo moral que não correspondam inteiramente a este retrato que dele apresentamos. Em todo o caso, elas, também caracterizáveis todas como se situando na região da reflexão meta-ética, se demarcam com nitidez de qualquer forma do relativismo.
De entre os filósofos de hoje que mais extensamente e com maior insistência e acuidade têm discutido a problemática do cepticismo moral e defendido uma sua variante em mais de um domínio específico deve-se destacar o nome de Walter Sinnot-Armstrong, que nomeadamente em sua obra maior sobre o assunto, Moral Skepticisms (Sinnot-Armstrong 2006),não só apresenta uma sistematização própria das posições filosóficas classificáveis sob essa designação como empreende a exposição de argumentos favoráveis e desfavoráveis correspondentes a essas posições no respectivo domínio específico e defende a sua própria versão de cepticismo moral, a que chama de pirronismo moderado, de acordo com a qual “recusa dizer se alguém, em princípio ou prática, se acha justificado sem qualificação em sustentar alguma crença moral” (Sinnot-Armstrong 2006: 251), e que nós preferimos considerar um neo-pirronismo meta-ético contemporâneo.
Bibliografia
Decleva Caizzi, F. (1981), Pirrone. Testimonianze, Bibliopolis, Nápoles.
Laursen, J. C. (1992), The Politics of Skepticism in the Ancients, Montaigne, Hume, and Kant, Brill, Leiden.
Pintard, R. (1943), Le libertinage érudit dans la première moitié du XVIIe siècle, Slatkine, Genève – Paris (1983).
Popkin, R. H. (1960), The History of Scepticism from Erasmus to Spinoza, University of California Press, Berkeley/ Los Angeles/London (1979).
Romão, R. B. (2003), “O Conceito de Ataraxia nos Pirrónicos Antigos e na ‘Apologia de Raimundo Sabunde’”, in Romão, R.B. (ed.), O Cepticismo e Montaigne, UBI, Covilhã, pp. 39-58.
Sextus Empiricus (1933), Outlines of Pyrrhonism, with an English translation by the Rev. R. G. Bury, Litt. D., Cambridge (1976). – Sinnott-Armstrong, W. (2006), Moral Skepticisms, Oxford University Press, Oxford.
Outros artigos
Absolutismo; Ataraxia; Felicidade; Relativismo; Tolerância
Como citar este artigo
Romão, R. B. “Cepticismo”. Dicionário de Filosofia Moral e Política (2019), 2.ª série, coord. António Marques e André Santos Campos. Lisboa: Instituto de Filosofia da Nova, URL: <http://www.dicionariofmp-ifilnova.pt/cepticismo>.
DOI: http://doi.org/10.34619/1kfq-qy77
Publicado em: 20 de Janeiro de 2019
Faculdade de Letras, Universidade do Porto
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