Fascismo

A 23 de Março de 1919 teve lugar, na Praça de San Sepolcro de Milão, a reunião que levou à criação da primeira organização que pode ser classificada como “fascista”, os Fasci Italiani di Combattimento (Payne 1995: 90). Este movimento político, liderado por Benito Mussolini, era formado por antigos combatentes da Primeira Guerra Mundial, ex-Socialistas e Sindicalistas Revolucionários convertidos ao nacionalismo, e futuristas como Marinetti. São por demais conhecidas as mudanças e reconfigurações ideológicas pelas quais o fascismo italiano passou nas décadas que se seguiram, ao longo das quais o movimento se transformou em partido (em 1921), Benito Mussolini se tornou Primeiro Ministro de Itália (em 1922) e teve início a construção de um dos regimes ditatoriais mais estudados do século XX, que haveria de durar até 1943. Diversos exemplos de reviravoltas ideológicas podem ser mencionados: a rejeição das propostas “socializantes” (ainda visíveis em 1919), adoção do liberalismo económico e, posteriormente, do corporativismo; o Tratado de Latrão com o Vaticano em 1929, apesar do anticlericalismo dos primeiros anos; a aparente oposição ao regime de Hitler e posterior aliança com este, etc. O cenário torna-se ainda mais complexo se referirmos os anos finais da República Social Italiana (1943-1945), durante a qual foram recuperados alguns dos princípios “socializantes” do primeiro fascismo.

A história do fascismo italiano é sintomática das dificuldades com que os estudiosos se depararam praticamente desde o surgimento do movimento. Contudo, apesar da multiplicidade de interpretações com as quais se tentou explicar o fascismo, quase todas tinham inicialmente em comum o facto de menosprezarem o conteúdo da ideologia. As transformações por que o fascismo italiano passou seriam um claro sinal de que este era um fenómeno político sem um conteúdo ideológico coerente e de que Benito Mussolini era o símbolo máximo da demagogia e do oportunismo. Esta tendência é verificável nas primeiras três grandes interpretações do fascismo, que surgiram ainda antes da Segunda Guerra Mundial, e que são resumidas por Renzo De Felice (1969): a interpretação marxista, que aborda o fascismo no âmbito da luta de classes e o considera como um expediente a que uma burguesia ameaçada recorre para deter o avanço do proletariado revolucionário; a interpretação liberal, que interpreta o fascismo como uma “doença moral”, um parênteses que interrompeu temporariamente o progresso da civilização europeia; a interpretação radical, que vê o fascismo como o resultado de desenvolvimentos nacionais específicos e dos vícios inerentes aos povos.

De resto, este menosprezo pela ideologia parece ser confirmado pelos próprios fascistas. É o caso de Benito Mussolini, que no Primeiro Congresso dos Fasci em Florença, em Outubro de 1919, ao discutir o tipo de regime que o seu grupo deveria apoiar (monarquia ou república), afirmou que os Fasci não se regem por dogmas e princípios políticos, mas antes pelo pragmatismo e pelos factos que ocorrem na vida real. Não haveria, assim, um conteúdo doutrinário fixo no fascismo, mas antes o princípio pragmático de avaliar as circunstâncias e tomar decisões de acordo com o que é viável numa dada conjetura. Meses depois, no Segundo Congresso, em Milão, Mussolini refere também o seu apreço pela ação em detrimento do pensamento. As palavras que pronunciará naquele evento, refere ele no início do seu discurso, apenas terão valor se forem vistas como atos em si mesmas e se motivarem atos futuros. Ver o fascismo como uma política de ação direta e pragmatismo e não de pensamento e teoria é, pois, uma interpretação legítima e facilmente corroborada pelos próprios fascistas.

Contudo, Salvatore Garau (2015: 1) refere que esta abordagem, que menospreza a ideologia, não é a única existente e que, nos dias que correm, já não é a dominante nas universidades. Assim, uma segunda abordagem carateriza-se por olhar para a ideologia como uma componente essencial. Tal abordagem começou a tomar corpo nos anos 60 e foi inicialmente influenciada, sobretudo, pela obra do historiador alemão Ernst Nolte (1966). No seu Three Faces of Fascism, o historiador socorre-se de uma perspetiva meta-política para concluir que o fascismo é um tipo de antimarxismo que procura destruir o seu principal adversário através de métodos violentos e com uma ideologia radicalmente oposta (ainda que semelhante ao adversário nos meios que utiliza), e que tem por objetivo a autonomia nacional.  O autor afirmou ainda que o fascismo era como que uma resistência à “transcendência” (ou seja, uma tentativa de resistir à força meta-política associada ao progresso material e espiritual da humanidade).

Após o fim da Guerra Fria, esta abordagem focada na ideologia ganhou um novo ímpeto com Roger Griffin (1993) e o seu The Nature of Fascism. Neste livro, Griffin procurou definir o fascismo através da metodologia weberiana dos “tipos ideais”, concluindo que aquilo que o carateriza é o ultranacionalismo palingenético (do grego “palin” -novo+ “génesis”- nascimento). Para o autor, o fascismo procura dar a resposta a uma decadência nacional que é percecionada pelos fascistas como o principal problema que a nação enfrenta e que apenas pode ser solucionada através de um renascimento espiritual que envolva a totalidade da comunidade nacional. Refira-se ainda que, para Griffin, o fascismo não possui um conteúdo doutrinário como outras ideologias e só pode ser compreendido se se recorrer, não a conceitos políticos, mas a mitos, isto é, a narrativas que, independentemente da sua veracidade, são tidas como reais e incentivam um grupo (no caso do fascismo, as massas nacionais) à mobilização política. Assim, a nação e o renascimento palingenético são os mitos fundamentais da ideologia fascista.

Nos anos seguintes, diversos investigadores seguiram na esteira deste autor, como foi o caso de Payne (1995), Eatwell (1997) ou Mann (2004). Independentemente do grau de discordância que cada um manifestasse para com as conclusões de Griffin, a maioria (apesar de algumas exceções) parecia concordar que o fascismo não poderia ser compreendido sem que se prestasse atenção à sua ideologia. Atualmente, existe, pois, um corpo teórico consolidado que concebe o fascismo não só como um tipo de partido ou de regime, mas também como uma ideologia passível de ser abordada no âmbito da Teoria Política e da Filosofia Política, tal como ocorre com o socialismo, o liberalismo, o conservadorismo ou qualquer outra ideologia.

Destacar os elementos básicos da ideologia fascista permite ter uma ideia mais clara dos princípios e ideias nos quais os fascistas baseavam as suas decisões, ainda que estas últimas possam parecer mais flexíveis e contraditórias do que as dos proponentes de outras ideologias. Compreender o conteúdo da ideologia fascista é um primeiro passo para compreender as decisões e ações dos fascistas. Por esta razão, Adrian Lyttelton (2011: 273) constatou que muitos dos avanços registados nos estudos sobre o fascismo nas últimas décadas advieram precisamente da decisão de levar a sério a ideologia. Ademais, Garau (2015: 10-11) defende que o fascismo (ou qualquer outra ideologia) pode ser analisado não só como um ímpeto meta-político (no caso do fascismo, o nacionalismo palingenético) ou como uma mentalidade (nesta ideologia, uma mentalidade que impele à ação direta e violenta), mas também como uma doutrina constituída por um conjunto de conceitos coerentemente articulados. Adotando esta última abordagem e aplicando-a ao fascismo, procurando nele um conteúdo doutrinário que englobe não apenas os mitos mobilizadores, é possível quebrar as últimas barreiras que impediriam que este fosse analisado como outras ideologias e, diferentemente de Griffin e do seu foco nos mitos, colocar o foco nos conceitos da ideologia fascista.

Acrescente-se que o foco na ideologia permite também alargar o escopo do Fascismo e incluir nele partidos, regimes e indivíduos que emergiram fora de Itália e cuja ideologia, ainda que com algumas variantes, correspondia sensivelmente à do partido de Benito Mussolini. Desta forma, contradiz-se aqueles que, como Allardyce (1977), defenderam que o Fascismo foi um fenómeno puramente italiano e que a palavra “fascista” não deve ser utilizada para caraterizar qualquer partido ou regime de outro país. Ademais, é possível considerar o Nacional-Socialismo alemão como uma variante alemã do Fascismo (ainda que com diversas especificidades) diferentemente de autores como Sternhell (1994), que o vêm como um fenómeno distinto do fascismo italiano. É mais uma vez Griffin (1993: xii) quem soluciona esta questão ao apontar o ultranacionalismo palingenético como a componente que permite englobar o Nazismo no mesmo fenómeno em que também se insere o fascismo de Mussolini.

Partindo da decisão de levar a sério a ideologia fascista, é então possível descortinar os principais elementos do fascismo histórico em textos e discursos fascistas do período que vai de 1919 a 1945, entre os quais se encontram o Mein Kampf de Adolf Hitler ou La Dottrina del Fascismo (publicado em 1932 e atribuído a Benito Mussolini, mas na verdade escrito em parceria com o filósofo Giovani Gentile). Entre os elementos que se revelam importantes através da leitura de textos fascistas encontram-se: o Nacionalismo, o Culto do Estado, o Corporativismo, a Revolução, o Autoritarismo, a Violência e o Imperialismo.

O nacionalismo holístico e orgânico

Como já sabemos, Roger Griffin (1993) aponta o nacionalismo como o elemento mais importante do fascismo. A primazia dada à nação é, de resto, evidente já na reunião fundadora de San Sepolcro, na qual Mussolini mencionava a necessidade de defender os interesses de Itália e a sua grandeza. La Dottrina del Fascismo concebe a nação de forma distinta de outras ideologias e vê-a como uma entidade transcendental, que representa a vontade histórica de um povo e que ultrapassa o materialismo para adquirir uma dimensão espiritual. Para o autor deste texto, a nação é como que uma entidade que está acima de acontecimentos históricos isolados e representa, mais do que uma raça ou uma delimitação geográfica, a personalidade inerente a um povo e a consciência que este tem de si mesmo. Como também refere o espanhol José António Primo de Rivera, a nação tem um destino e uma missão histórica que necessita de cumprir. O romeno Corneliu Codreanu, por sua vez, refere a transcendência temporal da nação, ao afirmar que esta se aproxima de uma dimensão divina que engloba todos os romenos que ainda vivem, os que já morreram e os que ainda não nasceram.

Assim, o fascismo adota um nacionalismo holístico, isto é, uma visão que concebe a nação como uma entidade homogénea no espaço e no tempo, que transcende as divisões e contradições que possam existir dentro de si (Eatwell 1997: xxiv). O nacionalismo fascista é também de tipo integral e orgânico, uma vez que olha para a nação como um coletivo e não como uma mera soma das suas partes individuais. A nação é como que um ser orgânico cujos elementos que o compõem necessitam de cumprir criteriosamente as tarefas que são necessárias para a sobrevivência da comunidade, independentemente da sua vontade individual (1995: 13).

Dentro da nação, o povo é também visto como uma entidade homogénea que constitui a força que impele a nação para o cumprimento da sua missão histórica. Na variante nacional-socialista alemã, o conceito de Povo (expresso através do termo “Das Volk”) e o de Raça adquirem uma dimensão particularmente relevante (de resto refira-se que, em passagens de textos como o Mein Kampf,estes dois termos parecem ser por vezes utilizados com significados semelhantes). Assim, o “Volk”, que também era reverenciado noutras ideologias de direita radical que não eram necessariamente fascistas, era concebido como uma entidade abstrata que englobava as principais caraterísticas dos alemães, incluindo a cultura e a ligação com o solo, e expressava uma essência transcendental (Payne 1995: 52).

A raça, que no Nacional Socialismo adquire uma relevância tão grande quanto o conceito de nação na variante italiana, é entendida no âmbito das teorias pretensamente cientificas e do Darwinismo Social que se haviam tornado populares nas décadas precedentes. Assim, como se lê no Mein Kampf, cada raça está associada a um conjunto de caraterísticas que as hierarquiza entre as mais e as menos civilizadas. Hitler dividia o mundo em raças criadoras de cultura (que estavam no topo da hierarquia), raças que não criam cultura, mas conseguem adotar uma cultura estrangeira (como era o caso dos japoneses) e ainda as raças que apenas destroem cultura (que se encontram na base da hierarquia e colocam em perigo a sobrevivência das raças pretensamente mais evoluídas). Nesta hierarquia racial, os arianos representavam o que de mais evoluído a humanidade já tinha alcançado, uma aristocracia de sangue que continha em si os elementos essenciais para a criação e manutenção de uma cultura superior. Assim, na variante alemã, é no conceito de raça que assenta a idealização da comunidade homogénea que é colocada no centro das preocupações.

O Estado forte e o totalitarismo

Como refere Michael Mann (2004: 14), os fascistas reverenciavam o estado forte e poderoso, que tinha uma tarefa a desempenhar no âmbito do rejuvenescimento da nação. O estado deveria assegurar a ordem e a harmonia e coordenar a vida económica, política e social, acabando com as divisões e contradições que existissem na comunidade nacional. É em La Dottrina del Fascismo que se encontra uma das mais célebres definições do estado fascista. Para o autor deste texto, o estado é uma entidade que está acima de qualquer grupo ou classe social. É através dele que é possível alcançar a síntese nacional que os fascistas ambicionam, pois o estado contém em si todos os valores espirituais de um povo e representa a totalidade da sua vontade. O estado adquire uma dimensão transcendental e ultrapassa os limites da vida de cada indivíduo para se tornar numa entidade atemporal, sendo assim o instrumento que possibilita que a nação se organize organicamente.

No entanto, apesar de a função atribuída ao estado ser comum a todas as variantes do fascismo, existem diferenças na forma como algumas entendem as caraterísticas que ele deveria assumir. Encontramos, por exemplo, a ideia de um estado benignamente paternalista nos textos do fascista francês Marcel Déat, que compara o estado a um jardineiro que reorganiza de forma pacífica as flores do seu jardim. Já em Hitler e no Nazismo, existe a ideia de que o estado, por mais forte que seja, apenas se torna relevante para o Nacional Socialismo na medida em que seja colocado ao serviço dos interesses da raça e tome medidas que garantam o seu desenvolvimento e sobrevivência. Para o Nazismo, o estado deve ser um meio para um fim (a sobrevivência da raça) e não um fim em si mesmo.

Um conceito que surge associado ao estado é o de Totalitarismo, que foi inicialmente usado de forma pejorativa por antifascistas, mas que muitos fascistas posteriormente adotaram com uma conotação positiva.  O conceito de totalitarismo, que foi utilizado por uma corrente de interpretação do fascismo nos anos 50, e ao qual ainda recorrem autores como Emilio Gentile (2000) e Michael Burleigh (2008), remete para a ideia de que um estado abarca todas as esferas da vida pública e privada, não permitindo qualquer tipo dissidência ou contestação contra aquilo que é visto como o desígnio nacional (Payne 1995: 121). Esta conceção encontra-se presente na conhecida frase de Mussolini “Tudo dentro do estado, nada fora do estado, nada contra o estado”.

Não obstante, parece haver, entre os fascistas, algumas divergências a respeito deste conceito no que concerne aos limites da interferência do estado. Tal torna-se evidente no caso do britânico Oswald Mosley, que defende a continuação da divisão entre a esfera pública e privada, afirmando que, no que diz respeito a esta última, cada cidadão tem liberdade para agir de acordo com a sua vontade, desde que não coloque em risco os desígnios nacionais. Contudo, e apesar destas aparentes divergências, é possível afirmar que, de uma maneira ou de outra, o totalitarismo fascista remetia sempre para uma necessidade de reinserir o individuo na comunidade nacional, independentemente do grau com que, pelo menos no plano teórico, algumas variantes do fascismo pareciam estar dispostas a reconhecer a necessidade de manter intocados alguns espaços da esfera privada. Esta visão do estado total é percetível, por exemplo, no francês Marcel Déat, que usa o conceito de totalitarismo para referir um tipo de regime em que os opostos e contradições são reunidos e reconciliados.

O corporativismo e a conciliação nacional

O Corporativismo representava um novo sistema de representação de interesses organizado através de categorias hierarquizadas e diferenciadas (Schmitter 1974), que remete para a forma como os fascistas pretendiam conciliar os opostos dentro da nação. O fascista britânico Alexander Raven Thomson, por exemplo, via o corporativismo como uma forma de expressão da nação orgânica, pois permitiria organizar o sistema produtivo nacional de acordo com as funções que cada um realizava. A Carta del Lavoro de 1927, documento influente que estabelecia os princípios que deveriam guiar o sistema corporativo italiano, definia as corporações como organizações unitárias do sistema produtivo que reuniam todos os elementos de um ramo de produção e que deveriam representar os interesses destes nas negociações de contratos e normas laborais. Apenas as corporações reconhecidas pelo estado seriam legitimamente consideradas como representantes dos interesses do ramo de produção.

De acordo com Pinto (2017: 3) o Corporativismo era um conceito recorrente nas mais diversas ideologias da época, surgindo também na Direita Radical e numa Direita Conservadora influenciada pela encíclica de Leão XIII Rerum Novari. No contexto do fascismo, o corporativismo era visto como uma alternativa ao sistema económico capitalista e às democracias liberais, pois colocaria o foco, não nos direitos individuais, mas no “homem” como um ser corporativo que se encontra inserido em diversos grupos sociais e, em última instância, no estado nacional. Mais do que indivíduos competindo entre si, os elementos que compõem a economia formam, na visão de um fascista como Francisco Rolão Preto, grupos económicos, e é tendo por base tais grupos que o corporativismo deve ser organizado.

De igual modo, o corporativismo seria também uma alternativa ao socialismo, tanto nas suas manifestações revolucionárias como reformistas, solucionando a luta de classes e permitindo a conciliação de interesses entre trabalhadores e empregadores (Pinto 2017: 32). Como é referido na Dottrina del Fascismo, o estado corporativo deveria resolver as crises e contradições do capitalismo sem cair nos perigos do socialismo soviético. Extinguido o ódio entre classes, seria possível alcançar a cooperação e solidariedade nacionais e os interesses de todas as classes sociais seriam atendidos, desde que subordinados ao interesse nacional. Assim, os fascistas amiúde referiam não rejeitar as reivindicações da classe trabalhadora e procuravam apelar também a este setor da população e recuperá-lo para a ideologia nacionalista. A iniciativa privada e o lucro seriam mantidos, ao mesmo tempo que algumas reivindicações dos trabalhadores seriam levadas em conta, bem como os interesses das classes médias.

Refira-se, contudo, que nem todas as variantes do fascismo parecem ter dado a mesma relevância a este conceito, que parece ausente na variante romena da Guarda de Ferro (Pinto 2017: 23). Assim também, apesar de o Mein Kampf referir a importância de conciliar os interesses entre patrões e trabalhadores no âmbito dos interesses nacionais, o regime Nazi não adotou um sistema corporativo semelhante ao de Itália, mas antes uma forma distinta de dirigismo económico. Não obstante, todas as variantes de fascismo, de uma forma ou de outra, colocavam enfâse na necessidade de conciliar as classes sociais e, ainda que vagamente, defendiam algum tipo de sistema económico que servisse esse fim.

A revolução palingenética

A forma como os fascistas faziam uso do conceito de Revolução distinguia-os do Conservadorismo, com os quais partilhavam algumas preocupações, e também de outras ideologias da Direita Radical. No entanto, a conceção da revolução fascista também se distinguia daquela que surge em ideologias marxistas e outras variantes do socialismo. De resto, os fascistas rejeitavam por completo o tipo de revolução marxista e amiúde justificavam o seu repúdio do marxismo com base nessa rejeição. No âmbito do fascismo, a revolução tem um escopo nacional (e não de classe, como no caso marxista) e deve rejeitar todas as formas de materialismo, focando-se ao invés na dimensão espiritual. A revolução fascista é, acima de tudo, uma revolução espiritual, moral e ética (Payne 1995: 487-488), que tem como objetivo a consciencialização dos membros da nação para as tarefas que estes necessitam de cumprir para defender os interesses nacionais.  

Como era referido pelos próprios fascistas, estes não defendiam uma ideologia reacionária, que perfilhava o regresso a um passado idealizado. Ao invés, pretendiam construir um futuro alternativo, fazendo a história retomar um percurso que havia sido abandonado. Rolão Preto, por exemplo, escreve que é necessário regressar às ideias da Idade Média de maneira a recuperar um rumo entretanto esquecido. A construção de uma Nova Era, baseada no estado nacional orgânico, era um dos principais objetivos da revolução. O fascismo utiliza, assim, um conceito de progresso que difere daquele que encontramos no Liberalismo: ao invés de ser linear, o progresso pode implicar, como no caso de Rolão Preto, um regresso ao passado para reencontrar antigos valores (que os fascistas vêm como eternos) e com eles construir uma modernidade alternativa e uma nova era. No caso de Adolf Hitler, o progresso relaciona-se com a sua conceção da Luta de Raças. Para o líder alemão, o progresso histórico apenas se torna possível através dos feitos que a raça ariana alcançava na sua luta pela sobrevivência, o que muitas vezes implica a construção de uma civilização com base na subjugação de outros povos. 

Como sabemos através de Griffin (1993), esta revolução tem uma dimensão palingenética e foca-se na ideia do Renascimento. Central a todas as variantes do fascismo é a ideia de que a nação vive, no presente, um momento de decadência que é causada pelos fatores que dividem a nação, como as contendas entre indivíduos e partidos (que são responsabilidade do liberalismo) e as lutas entre classes (que são causadas pelos defeitos do liberalismo e estimuladas pelo socialismo). No caso do espanhol José António Primo de Rivera, encontramos ainda a referência aos separatismos e independentismos (por exemplo, o separatismo catalão) como potenciais causadores de divisões e decadência. É para solucionar este problema da decadência que se torna necessária a revolução palingenética e o renascimento espiritual. Este foco no rejuvenescimento ajuda também a explicar por que razão os fascistas perfilhavam o culto da juventude e tendiam a ver esta faixa etária como propensa a empenhar-se na reconstrução da nação devido ao vitalismo e à virilidade que lhe são característicos (Mosse 1999: 71).

Um outro conceito importante é o de Homem Novo, pois a construção deste novo tipo de homem é um dos principais objetivos da revolução fascista. Como refere Codreanu, a Roménia encontra-se num estado de decadência porque carece de “homens”, e são estes homens que importa criar para salvar a nação. Este Homem Novo deveria exibir as caraterísticas de virilidade e masculinidade capazes de ajudar a ultrapassar a decadência que a nação enfrenta (Payne 1995: 8). Como é referido na Dottrina del Fascismo, o Homem Novo deveria também adquirir uma noção clara dos valores transcendentais da nação e da história, pois, fora da história, o homem não é nada. O Homem Novo, de acordo com este texto, é aquele que conseguirá agir no presente com plena consciência dos valores que ultrapassam as barreiras do espaço e do tempo. De forma semelhante, Primo de Rivera usa o conceito de Personalidade para referir o tipo de homem que abandona o individualismo e redescobre a sua missão nacional ao aceitar inserir-se nos grupos a que pertence: família, município, sindicato, estado, etc.

O autoritarismo e o elitismo

Num primeiro momento, a ideologia fascista concebe a autoridade como um princípio básico de organização social: “crer, obedecer, combater” era, assim, um dos slogans essências do fascismo italiano. Os fascistas tinham, pois, uma visão hierárquica da comunidade e exibiam uma tendência para exaltar a liderança e o princípio da subordinação à vontade do líder (Payne 1995: 102). Ao destacar o conceito de Autoridade, o fascismo coloca o conceito de Liberdade num plano marginal. A liberdade como ela é concebida pelo liberalismo, defendem os fascistas, mais não é do que uma forma de egoísmo que divide a nação, e deve ser substituída por uma conceção de liberdade em que esta é vista como a ação do individuo que se encontra integrado na comunidade nacional. 

Noutra dimensão do autoritarismo, deve referir-se também o Elitismo, uma vez que esta ideologia tinha uma conceção fortemente elitista da sociedade (Payne 1995:  14). Na Dottrina del Fascismo é referido que a sociedade deve ser sempre dirigida por um conjunto de elites clarividentes, que conheçam os valores transcendentais da nação e que por isso estão aptas para comandar. Contudo, aquilo que carateriza o elitismo de tipo fascista é a ideia de que é necessária uma revolução que crie uma nova elite, uma vez que a atual se encontra decadente. Codreanu, por exemplo, escreve sobre um processo de renovação de elites, que se impõe sempre que a elite existente já não tem a capacidade para conduzir os destinos nacionais. Associado ao elitismo fascista, existe ainda um culto do líder, que é visto como um indivíduo que se eleva acima das massas, ao mesmo tempo que representa as suas aspirações e se torna um elemento necessário para a transformação social. O líder carismático deve personificar os interesses nacionais e atuar para que estes sejam concretizados.

Neste âmbito, é importante mencionar que existe no fascismo uma aparente contradição entre populismo e elitismo, ou seja, uma amálgama de ideias aparentemente contraditórias, mas que ainda assim são recorrentes. Se, em alguns momentos, o povo é visto como uma força que impele a nação e que o líder necessita de ouvir e servir humildemente, noutros momentos os fascistas revelam o seu desprezo pelas massas e referem que estas não são suficientemente prescientes para conduzirem os seus próprios destinos na ausência de um líder. Esta visão é percetível, por exemplo, no Mein Kampf, no qual Hitler alternadamente insulta a ignorância das massas e elogia a sua força revolucionária. Existe, assim, uma tensão entre elementos elitistas e alguns elementos populistas que parece nunca ser totalmente resolvida e se constitui como a contradição interna fundamental desta ideologia.

A violência criadora

A violência na ideologia fascista cumpre duas principais funções: tem uma utilidade prática na luta contra os inimigos da nação, mas é também um elemento ideológico fundamental para explicar a conceção do mundo fascista. A respeito da primeira dimensão, é comum encontrar-se nos textos e discursos de fascistas a ideia de que a sua violência é preventiva e que procura evitar os males que ocorreriam se os seus inimigos políticos tomassem o poder. Dizem-no, por exemplo, Marcel Déat e Oswald Mosey ao explicarem por que razão estão dispostos a utilizar métodos violentos para deter os seus inimigos comunistas. Se a violência dos revolucionários de esquerda é anárquica e destruidora, a violência fascista pretende manter a ordem, sendo por isso olhada com uma conotação positiva.

Para além dos adversários políticos, a violência deveria ser também utilizada contra os elementos estranhos à nação que, uma vez que não faziam parte desta entidade homogénea, colocavam a sua união e sobrevivência em perigo. A violência no fascismo remete assim para o conceito de Eliminacionismo, ou seja, para o objetivo de eliminar e remover os elementos que são vistos como exteriores à comunidade, o que muitas vezes implica discursos de ódio e a defesa de medidas repressivas (Kallis 2009: 6). Como é do conhecimento geral, poucas variantes da ideologia fascista atingiram uma dimensão eliminacionista tão relevante quanto a do Nacional Socialismo alemão (ainda que este seja acompanhada de perto pela ideologia da Guarda de Ferro romena, igualmente violenta, e pelos Ustashes da Croácia). O Nazismo notabilizou-se pelo seu antissemitismo e pela sua conceção dos judeus como uma raça (e não apenas como um grupo religioso) que colocava em perigo a sobrevivência dos arianos e que tinha como objetivo corromper a vitalidade e virilidade da nação alemã, através de meios como a propagação do liberalismo democrático e do socialismo marxista. É no Mein Kampf que se encontram algumas das mais violentas tiradas de ódio contra este grupo, que Hitler ataca repetidamente e vê como o principal inimigo da Alemanha.

Numa outra dimensão, contudo, para além desta dimensão pragmática, a violência como que ganha o estatuto de conceito essencial para compreender a visão do mundo fascista. Neste âmbito, os fascistas olham para a violência como uma componente fundamental não só da ação política (que é vista como uma “batalha”), mas da própria vida (Payne 1995: 10-11). Assim, o fascismo concebe o mundo como um lugar violento, onde a luta pela sobrevivência é essencial e a covardia deve ser repudiada. A violência é também um elemento criador, como já era percetível nos textos de Marinetti, que elogiam a guerra e a sua pretensa beleza, ao mesmo tempo que rejeitam o pacifismo. Na Dottrina del Fascismo, o seu autor refere que é a guerra que traz a nobreza ao povo que tem a coragem de a enfrentar. Mas é em Adolf Hitler que encontramos a mais importante referência à violência como um elemento essencial do mundo: para o líder Nazi, a luta pela sobrevivência e os conflitos entre raças fazem parte da evolução da história e não devem ser evitados, mas incentivados. A violência está presente na natureza e na biologia e, por isso, os seres humanos não devem renegar aquilo que os impele à atividade violenta.

O Império e a redefinição da posição da nação na arena internacional

O imperialismo está presente nas mais diversas variantes da ideologia fascista e já era notório na reunião inicial de San Sepolcro, na qual Benito Mussolini reclamava para Itália a zona da Dalmácia, que via como o prémio que o seu país merecia depois da participação da Primeira Guerra Mundial. A ideia de anexação territorial é acalentada por muitos fascistas, que a vêm como o destino histórico que a nação precisa de cumprir. O expansionismo é como que uma necessidade histórica da nação e também uma forma de unir os seus elementos em torno de um empreendimento comum, dessa forma consciencializando-os dos desígnios nacionais e tornando possível a revolução palingenética. La Dottrina del Fascismo considera o imperialismo e a expensão territorial como uma manifestação de vitalidade, já que as nações que a eles renunciam por norma tornam-se decadentes. Para Adolf Hitler, a conquista de um “espaço vital” na Europa do Leste era, não só uma forma de a raça ariana adquirir os meios de que precisava para sobreviver, mas também um empreendimento que representava o cumprimento de um destino histórico da raça na sua luta constante contra os inimigos.

Refira-se ainda o conceito de Irredentismo, bastante popular em várias nações no início do século XX, que preconizava o desejo de anexar ao território nacional espaços territoriais a que a nação teria direito devido a algum tipo de legitimidade histórica, real ou imaginária. Este irredentismo encontrava-se presente em muitas variantes do fascismo, incluindo no movimento fascista italiano na fase inicial e na variante nacional-socialista. Levando em conta estes elementos, facilmente se compreende que Kallis (2000: 198-199) considere que o expansionismo fascista se baseava mais na ideologia do que em necessidades materiais e que servia para legitimar a conceção violenta que os fascistas tinham do mundo e da sociedade.

Contudo, nem todas as variantes do fascismo incluíam o objetivo de anexar novos território, pois em nações que já possuíam um império era comum que se optasse por perfilhar antes a revalorização dos territórios já conquistados. É o caso do fascismo de Mosley, que pretendia criar um império autárquico, no qual as principais transações comerciais da Grã-Bretanha seriam efetuadas com as colónias na Índia e em África, e não com o mundo exterior. De uma maneira geral, contudo, mesmo quando os fascistas não perfilhavam o imperialismo, almejavam alterar o cenário internacional de maneira a que a sua nação adquirisse uma posição de influência e importância que pretensamente havia perdido desde tempos passados (Payne 1995: 7).

Conclusão

No dia 28 de Abril de 1945, o corpo de Benito Mussolini, que havia sido executado pouco tempo antes, foi exibido perante uma multidão enraivecida numa praça de Milão, não muito distante do local em que havia tido lugar a reunião fundadora do fascismo. Este acontecimento, que antecedeu por poucos dias a morte de Hitler e o fim do Terceiro Reich, pode ser visto como um símbolo do fim da era do fascismo e da rejeição definitiva desta ideologia por parte dos europeus que, uns anos antes, a haviam aceitado, mesmo que apenas passivamente. Derrotado numa guerra que concebera como necessária para a construção de uma nova sociedade, mas que trouxera apenas devastação, o fascismo passou a ser encarado como um sinónimo de destruição e de “mal absoluto”.

Com o passar do tempo, torna-se cada vez mais fácil regressar a esta época e abordar o conteúdo desta ideologia sem que com tal se pretenda legitimá-la ou recuperá-la. O que fica exposto nas páginas precedentes é precisamente uma tentativa de definir as caraterísticas essenciais da ideologia que influenciou a Europa no período histórico que vai de 1919 a 1945, tendo sido destacados elementos como o Nacionalismo, o Culto do Estado, o Corporativismo, a Revolução, o Autoritarismo, a Violência e o Imperialismo. A continuação do fascismo no período do pós-guerra e a reconfiguração do fascismo em variantes neofascistas foi um assunto que não foi abordado, e que, portanto, poderá noutro local ser alvo de uma análise semelhante à que aqui se encontra.

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Outros artigos

Ditadura; Elite; Estado; Imperialismo; Nacional-Socialismo; Totalitarismo; Violência


Como citar este artigo

Martins, C. M. “Fascismo”. Dicionário de Filosofia Moral e Política (2019), 2.ª série, coord. António Marques e André Santos Campos. Lisboa: Instituto de Filosofia da Nova, URL: <http://www.dicionariofmp-ifilnova.pt/fascismo>.


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DOI: http://doi.org/10.34619/5ree-ga13


Publicado em: 21 de Junho de 2019


Carlos Manuel Martins

ICS, Universidade de Lisboa

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