má-fé (sartre)

A noção de Má-Fé (mauvaise foi) é discutida por Jean-Paul Sartre, na sua principal obra filosófica – L’être et le néant. Essai d’ontologie phénoménologique (Sartre 2014: cap. II), em português O Ser e o Nada: Ensaio de ontologia fenomenológica (Sartre 2021)–, como uma noção que, embora de uso corrente, tem uma especial inflexão filosófica no contexto de uma abordagem existencialista ao problema da forma e da razão de ser última da liberdade humana.

Em L’Être et le Neánt, Sartre define a Má-Fé como uma forma auto-inflectida de mentira – ou seja, de maneira apenas afim ao que acontece com a mentira explícita a uma outra pessoa, na Má-Fé, essa entidade que cada um de nós é e a que Sartre chama Para-Si incorre num desdobramento, temporário e volátil, entre conhecimento e desconhecimento da verdade sobre si próprio. Num episódio ou num estado mais duradoiro de sabotagem da verdade devida e sabida sobre e a si-próprio, aquele que age de Má-Fé age e pensa dupla e dubiamente: a um tempo conhece e desconhece factos sobre si próprio, assumindo uma posição insustentável de quem se diz uma coisa e sabe mais do que diz sobre aquele a quem diz o que diz. (É importante frisar que Sartre não concebe a Má-Fé apenas – ou sequer maioritariamente – como um fenómeno discursivo ou linguístico; a mentira em questão é, acima de tudo, uma “mentira existencial”, uma forma de ludibrio vivido por quem está de Má-Fé.)

No sistema filosófico de Sartre, que, mais do que o de qualquer outro filósofo existencialista, coloca uma tónica explicativa muito importante no elemento negativo da ligação da consciência consigo própria – ou seja, no Nada enquanto elemento metafísico indispensável a um sistema dualista, isto é, a um sistema que concebe duas grandes regiões ontológicas contíguas mas mutuamente irreconciliáveis, Em-si e Para-si, bem como sobre as condutas negativas do ser humano –, a noção de Má-Fé é ela própria uma extensão de um sistema filosófico integral. Quer dizer, por causa dessa ênfase no elemento de negação da consciência humana sobre si própria, que Sartre considera definitório e inarraigável, a Má-Fé é descrita como uma característica inevitável de certas constelações da situação humana. Por mais crítica que a descrição sartreana de Má-Fé possa ser, no interior da apresentação dos vários momentos da consciência de si, tal como articulada em L’Être et le Néant, há nessa descrição uma resignação quanto à respetiva associação às tensões últimas que definem a própria natureza humana.

Escreve Sartre:

Em todo o caso, ainda que a existência de Má-Fé seja precária e esta pertença àquele género de estruturas psíquicas a que podemos chamar ‘meta-estáveis’, a mesma não deixa de apresentar uma forma autónoma e duradoira: ela pode mesmo ser o aspeto normal da vida para um grande número de pessoas. Pode-se viver na Má-Fé, o que não significa que não se tenham assomos bruscos de cinismo ou de boa-fé, e sim que tal implica um estilo de vida constante e particular. O nosso embaraço neste ponto é extremo, porque não podemos rejeitar nem compreender a Má-Fé. (Sartre 2014: 84; tradução nossa)

De um ponto de vista estritamente formal, o mais interessante da exposição sartreana sobre a noção e a experiência de Má-Fé é a respetiva demarcação da mentira (e do ato de mentir). Na mentira – ou, de forma mais relevante, para os propósitos do autor de L’Être et le Néant, no ato de mentir –, o sujeito conhece a verdade sobre o tópico da mentira, ao mesmo tempo que omite ou nega essa verdade quando, de forma articulada, a denega a outrem. Trata-se, como Sartre bem lembra, de “uma conduta de transcendência” (Sartre 2014: 83), porquanto o “quem” visado pela mentira é um outro sujeito. Na medida em que mentira e a consciência de mentira implicam uma duplicidade intrapsíquica entre conhecimento do facto y e a denegação articulada do mesmo a um outro, puramente justificadas por uma relação intimamente esclarecida com um objeto exterior à consciência, a mentira, pensa Sartre, não oferece um retrato específico sobre a dinâmica ontológica imanente à própria consciência humana. Ou seja, tratar-se-ia, para Sartre, de um fenómeno mundano pouco apto a revelar as incoerências típicas da própria consciência e dos elementos negativos que também lhe subjazem.

Fiel ao seu princípio metodológico de explicar elementos e experiências determinantes da realidade humana através da descrição de fenómenos nos quais impera o elemento negativo que move a própria consciência a ser aquilo que ela não é, Sartre utiliza esse móbil para introduzir o fenómeno da Má-Fé (contrastando-o com a mentira a outrem), e respetiva relação com as estruturas formais últimas do cogito, numa descrição da experiência humana a partir da perspetiva da primeira pessoa.

Justificando as razões pelas quais a Má-Fé não é uma simples forma de mentira, Sartre acrescenta: “[a Má-Fé], como já dissemos, é antes mentira a si” (Sartre 2014: 83). Que implicações tem uma tal afirmação para a metafísica sartreana como um todo – mais ainda, neste ponto da respetiva exposição em L’Être et le Néant?

Sartre define a forma de ser da consciência humana como uma pura transparência a si mesma, como uma homogeneidade minimamente substancial em que não existem falhas ou barreiras auto-referentes (a este respeito, Sartre negará categoricamente a possibilidade de a experiência de Má-Fé ser uma intromissão de material inconsciente sobre a experiência consciente do sujeito de Má-Fé) (Sartre 2014: 84 ss.). Para entender a insistência de Sartre sobre o diferencial absoluto que representa o fenómeno da consciência humana no âmago de um universo inerte e objetal, teremos de focar a análise naquilo que “consciência” significa para o filósofo francês. A mais elementar estrutura da consciência – ou cogito pré-reflexivo –, pensa Sartre, é só uma fina película da experiência íntima de si próprio que permite negar a realidade atual e conceber configurações de mundo alternativas à presente. É esta a forma de espontaneidade que é apanágio da própria presença a si e que, quando bem entendida, define o ser da consciência como uma forma irrecusável de liberdade. Liberdade é, pois, para Sartre, liberdade de negar cenários e configurações objetais exteriores correntes.

Ora, a volatilidade da experiência de uma mentira a si mesmo deve ainda servir a Sartre para revelar algo sobre a estrutura e a dinâmica interna da consciência humana, por um lado e, por outro, do tipo de experiência concreta que cada um de nós pode fazer contando com e a partir dessa forma de estrutura intrapsíquica.

A descrição da vivência e do cabimento mental da Má-Fé, tal como definidos e plasticamente ilustrados em exemplos de experiência quotidiana em L´Être et le Néant (Sartre 2014: 89 ss.) servirão a Sartre, num momento precoce de exposição da sua teoria definitiva sobre a estrutura da consciência humana (isto é, tal como plasmada em L´Être et le Néant, depois de um conjunto de obras de juventude devotadas ao mesmo tópico)[1], para expor os paradoxos inerentes à forma de ser última do Para-Si. Na medida em que aquilo que define a experiência de Má-Fé é uma constante oscilação entre a perceção íntima de um conjunto de verdades sobre si-próprio ou dos conteúdos últimos que aparecem ante uma experiência reflexiva sobre a minha consciência de mim, e uma omissão desses mesmos conteúdos claramente conhecidos, a Má-Fé revela o ser último da consciência humana como um lapso entre dois planos de imanência: um que reflete e um outro sobre o qual a reflexão opera. A experiência de Má-Fé é, pois, fenomenologicamente reveladora da estrutura íntima da consciência de si e respetiva oscilação entre um plano pré-reflexivo e um plano reflexivo ou posicional. E este é justamente um aspeto da discussão sartreana sobre o problema da Má-Fé pouco atendido em comentários sobre L´Être et le Néant ou em discussões avulsas sobre a atitude de Má-Fé.

Porém, quer o posicionamento deste afamado capítulo de L´Être et le Néant no interior da história conceptual da obra como um todo – isto é, entre o capítulo votado às origens ontológicas da negação (Primeira Parte, Capítulo I) e a segunda e mais central discussão da obra, dedicada às estruturas do Para-Si (Segunda Parte) –, quer o conteúdo especificamente teórico da exposição confirmam que Sartre pensou a atitude e a experiência subjetiva de Má-Fé como um protótipo disposicional e emocional da consciência íntima de si, que oscila permanentemente entre um patamar de imediatez pré-reflexiva e uma dinâmica secundária de reflexão e consequente auto-aperceção do primeiro nível experiencial. Para Sartre, essa disposição duplicada da consciência reverbera em todos os níveis da experiência humana: da perceção à vivência emocional, da consciência prática à dimensão última da consciência de um projeto pessoal único e irrepetível. A confirmar a dinâmica desta mesma estrutura intrapsíquica na experiência de Má-Fé, Sartre escreve o seguinte:

A própria essência da ideia reflexiva de ‘se dissimular’ alguma coisa implica a unidade de um mesmo psiquismo e, por conseguinte, uma dupla atividade no âmago dessa unidade, tendendo por um lado a manter e ter à vista a coisa a esconder e, por outro, a repeli-la e a escondê-la: cada um dos dois aspetos desta atividade é complementar do outro, o que significa que o implica no seu próprio ser. (Sartre 2014: 87; tradução nossa)

Portanto, analisada à luz da teoria sartreana sobre o cogito ou a consciência-si[2], a vivência de Má-Fé, para além de expor uma sabotagem auto-infletida à pura forma de liberdade radical que define a consciência humana (nos termos antes expostos, ou seja, como liberdade insuperável de negar configurações objetais correntes), como mais comummente é caracterizada a noção de Má-Fé no interior do projeto filosófico de Sartre, ainda mapeia conceptualmente e ilustra, a partir dos exemplos quotidianos muito circunscritos ao próprio período de composição de L´Être et le Néant (Sartre 2014: 89 ss.) usados por Sartre, a dinâmica imanente de autossuperação de estados ou constelações mentais fixas que, de outra forma, igualariam a forma de ser da consciência humana à inércia da identidade coisal. Tal como outras condutas de negação (e outras formas de vivência consciente), a Má-Fé é ainda uma manifestação imanente à própria consciência (si) que revela a condição de ser última que é apanágio da forma de ser humana que, segundo Jean-Paul Sartre, existe estruturalmente Para-Si.


[1] Veja-se, por exemplo, La transcendance de l’ego (Sartre 1992).

[2] O termo “conscience (de) soi” é cunhado pelo próprio Sartre logo na introdução a L´Être et le Néant (“À la recherche de l’être”), nos seguintes termos: “Esta consciência (de) si, não devemos considerá-la como uma nova consciência, mas como o único modo de existência que é possível para uma consciência de qualquer coisa. Tal como um objecto extenso é forçado a existir em três dimensões, também uma intenção, um prazer, uma dor, não poderiam existir a não ser como consciência imediata (de) si mesmos” (Sartre 2014: 20; tradução nossa).

Bibliografia

Sartre, Jean-Paul (2014), L’être et le néant. Essai d’ontologie phénoménologique, Paris, Gallimard, Paris [1943].

Sartre, Jean-Paul (2021), O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica, trad. Victor Gonçalves, Edições 70, Lisboa.

Sartre, Jean-Paul (1992), La transcendance de l’ego: esquisse d’une description phénoménologique, Vrin, Paris.

Gardner, Sebastian (2009), Sartre’s Being and Nothingness: A Reader’s Guide, Continuum, Londres.

Gardner, Sebastian (2017), “Sartre’s Original Insight”, Metodo. International Studies in Phenomenology and Philosophy, vol.  5, n.º 1, pp. 45-71.


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Como citar este artigo

Falcato, A. “Má-Fé (Sartre)”. Dicionário de Filosofia Moral e Política (2023), 2.ª série, coord. António Marques e André Santos Campos. Lisboa: Instituto de Filosofia da Nova, URL: https://www.dicionariofmp-ifilnova.pt/ma-fe/


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DOI: https://doi.org/10.34619/vwjj-hvjn


Publicado em: 14 de janeiro de 2023

Ana Falcato

FCSH, Universidade Nova de Lisboa

<anafalcato@fcsh.unl.pt>