autonomia

“Autonomia” é um dos conceitos centrais da filosofia moral e política, sobretudo da filosofia moderna. Com efeito, este conceito, como vários outros conceitos, tem uma história, isto é, a forma como hoje concebemos “autonomia” e os sentidos que lhe atribuímos refletem a invenção, por um lado, e transformação, por outro, de uma série de conceitos e práticas com ele relacionados. Para o propósito deste breve artigo quero explorar duas ideias: primeiro, a ideia de que há uma relação essencial entre o projeto da modernidade e a invenção do conceito de autonomia, geralmente atribuída a Immanuel Kant. Segundo, a ideia de que essa relação é muito mais complexa do que geralmente se atribui, complexidade essa que reflete a história efervescente dos séculos XVII e XVIII. Termino com uma reflexão sobre os sentidos de autonomia nos dias de hoje.

A invenção da autonomia kantiana

Jerome Schneewind mostrou na sua obra A invenção da autonomia (1997) que este conceito tem uma história e que essa história está localizada num período de tempo: o período geralmente conhecido e associado ao ‘Projeto do Iluminismo do qual Kant se torna autor emblemático e representativo.

Kant (1724-1804) é o autor que concilia, transformando, duas tradições filosóficas (o racionalismo e o empirismo) através do seu projeto crítico. Com efeito, Kant pretende responder a três questões: o que posso conhecer?, como devo agir?, e o que posso esperar? Estas três questões refletem uma totalidade na qual o sujeito está inserido; melhor dizendo, estas três questões obrigam a repensar a tradição filosófica enquanto metafísica, assim como o seu lugar e a sua relação com a moral, a política, a cultura e a história. A Crítica torna-se condição necessária para que a razão se torne consciente de si mesma, dos seus territórios e limites, com desdobramentos em todas as esferas.

Na Crítica da Razão Pura (1781), Kant procura responder à questão: “o que posso conhecer?”. Aqui Kant demonstra a diferença entre operações mentais: intuições (representações singulares), conceitos (representações gerais) e ideias (representações que estão para lá da experiência possível). Através desta distinção, Kant demonstra que para haver conhecimento é preciso ter conceitos e intuições, porém, as ideias conduzem a antinomias da razão, isto é, a contradições aparentemente insuperáveis. A questão que orienta a CRP e que perpassa as outras obras de Kant é a seguinte: como é possível conciliar o determinismo da natureza com a liberdade? Será que estamos condenados à determinação imposta pelas leis da natureza e a liberdade é mera ficção? A distinção acima mencionada permitirá garantir a possibilidade (e necessidade) da liberdade. Com efeito, Kant vai mostrar que apesar dos seres humanos serem incapazes de ter uma experiência e conhecimento das ideias, é possível ainda representá-las. As ideias passam a ter a tarefa fundamental de verificar e controlar as ‘pretensões perigosas do entendimento’ (Kand 1951: 3) As ideias, por isso, têm uma função reguladora, revelando a razão não como fonte de conhecimento mas como fonte de moralidade. As ideias permitem fazer a passagem da razão teórica à razão prática.

A dessubstancialização da ideia em ideal permite a Kant transformar a razão em moral (B376). Depois de estabelecer “o que podemos conhecer” e como podemos conceber a compatibilidade entre liberdade e os mecanismos causais da natureza, Kant quer definir “como devemos agir”. Ao passar do “é” da Primeira Crítica, enraizada na necessidade natural, ao “dever ser” da Segunda Crítica, Kant propõe um conceito de liberdade que devemos supor mas não podemos conhecer e que cada um deve ter como ideia reguladora expressa em imperativos.

A moralidade, através da ideia de liberdade, cria um novo mundo […] o facto de que há um ‘dever’ confirma a existência da liberdade transcendental, porque implica um ‘poder’. Neste contexto, Kant propõe um conceito de liberdade com ‘realidade objetiva’ na medida em que estabelece a ligação entre o fenómeno temporal e a ordem intemporal, entre o sensível e o inteligível. (Costa 2011: 24-5)

No prefácio da Segunda Crítica Kant diz que o conceito de liberdade é a base de todo o sistema da razão pura. (Kant 1996: 14) Ao aceitar a liberdade enquanto facto da razão e ao redefinir a natureza humana – agora pensada a partir de uma articulação entre a dimensão sensível/empírica e a dimensão inteligível/pura – Kant cria o espaço para a reconceptualização da moral via categoria de autonomia. Além disso, Kant torna o ser humano no “[…] ponto de convergência entre natureza, moralidade e teleologia, e portanto como fonte de sentido da sua aparentemente natureza paradoxal” (Costa 2011: 26).

Vale ressaltar que a autonomia kantiana “não surge de um desejo simples e dogmático de transcender a religião e a comunidade, mas sim de um engajamento complexo no âmbito de uma série de debates acerca da natureza e possibilidade de uma comunidade com outros seres humanos e com Deus” (Brender & Krasnoff 2004: 3). Vejamos como se constrói e inventa este conceito que até hoje define e delimita o nosso a priori histórico (Foucault 1971).

O desafio moral

De acordo com Larrimore (2004: 61), Schneewind ensina-nos que a invenção da autonomia kantiana é fruto da constelação de uma série de problemas e questões, nomeadamente o problema do mal e o debate entre voluntaristas e anti-voluntaristas, representando Kant a tentativa de deslocar a teleologia em nome da ética. Dito por outras palavras, Kant é um autor situado num tempo e num espaço, vivendo debates da sua época, tentando responder e posicionando-se em relação a eles. Uma das questões da sua época é efetivamente a questão da origem do mal e do papel de Deus no mundo e na relação com os seres humanos; outra é a questão do progresso na história e a finalidade dos seres humanos. Adjunta a estas surge a questão da fonte e origem da própria moralidade, entendida não apenas como “conjunto de costumes” (mores) que devem ser obedecidos e replicados, mas como leis que geram obrigação e dever. Durante os séculos XVII e XVIII as concepções de moralidade baseadas na obediência (cega), quer a Deus quer a um “tutor” começam a ser contestadas por novas concepções que se constroem a partir da ideia de autonomia, de auto-governo, de auto-gestão.

Se a Crítica da Razão Pura nos havia obrigado a rever os limites da própria razão, compreendendo (e postulando) a distinção de esferas (fenoménica e numénica), e na CRP se havia estabelecido a possibilidade da relação entre natureza e liberdade, é no uso prático da razão, isto é, no seu uso moral, que a unidade da razão se realiza e manifesta. A obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes representa o projeto kantiano de estabelecer a moralidade em novos fundamentos. Porém, a tarefa kantiana é mais ambiciosa do que inicialmente possa parecer: aqui, Kant depara-se com dois desafios distintos mas interdependentes. O primeiro desafio é o de provar a necessidade da moralidade; o segundo, o de identificar o seu princípio supremo. Neste sentido, observamos que a FMC está suspensa entre, por um lado, um projeto meta-ético que procura responder ao processo radical de questionamento acerca das condições de possibilidade da própria moral e, por outro lado, um projeto ético-normativo, na medida em que através do método a priori Kant busca trazer à superfície a verdade universal que todos os seres humanos, em virtude da sua racionalidade, já (re)conhecem – a existência e verdade da moral, metafisicamente traduzida no principio da autonomia da vontade e manifestada para os seres racionais humanos em forma de imperativo categórico e dever.

Compreendendo os conceitos

A FMC começa com aquilo que Kant considera ser um conceito familiar, a saber, o conceito de “boa vontade”. “Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade” (Kant 2007: 21). O que é essa “boa vontade”? Como garantir ou ter provas da sua existência? Como ascender da experiência comum a uma metafísica? Kant começa a analisar os desdobramentos conceptuais a partir da “boa vontade”. O primeiro desses desdobramentos dá-se com o conceito de dever. Como diz o autor, “o conceito de dever […] contém em si o de boa vontade” (Kant 2007: 26, meu itálico) ou “[o] dever, como dever em geral, anteriormente a toda a experiência, reside na ideia de uma razão que determina a vontade por motivos a priori” (Kant 2007: 41, meu itálico).Kant recorre a exemplos para que através destes seja possível reconhecer o que os transcende, isto é, os conceitos puros racionais que constituem a moralidade. A partir daqui Kant entra na discussão do que é a vontade propriamente dita, e afirma claramente que “a vontade não é outra coisa senão razão prática” e “a vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer como bom” (Kant 2007: 47 meu itálico).

Vemos esboçar-se em Kant uma conceptualização de vontade que se define apenas a partir da razão. Irá surgir, no reflexo da própria CRP, a distinção entre seres estritamente racionais – e que por isso têm vontades perfeitamente boas, onde a ordem do ser coincide com a ordem do dever ser – e os seres que, embora racionais, têm uma natureza empírica, como é o caso dos seres humanos. Na medida em que os seres humanos são seres imperfeitos, aquelas leis válidas para todos os seres racionais devem manifestar-se de forma prescritiva, isto é., como mandamentos que geram obrigação naqueles que os recebem. Os imperativos são esses mandamentos que expressando-se pelo verbo dever (sollen) geram obrigação. É importante compreender, porém, que a existência da obrigação manifesta a possibilidade de, naquele que a recebe, a contrariar. Dito por outras palavras, os seres humanos reconhecem o dever e sentem-se obrigados a agir segundo a lei traduzida em imperativo, porém, têm a capacidade de agir contra esse mandamento.

Na sua formulação principal o imperativo categórico diz: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (Kant 2007: 59). Como diz Costa, “ao apresentar-se, o imperativo categórico exclui do horizonte qualquer outra possibilidade que não a necessidade do que ele impõe e ordena.” (Costa 2016: 542) As várias formulações do imperativo categórico sublinham a especificidade da sua natureza. A segunda formulação diz “Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza” (Kant 2007: 59) e a terceira formulação diz “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” (Kant 2007: 69, meu itálico).

Percebemos que vontade e razão são indissociáveis em Kant. A vontade é razão prática, isto é, a manifestação da razão enquanto capacidade de autodeterminação de acordo com fins objetivos, isto é, válidos para todos os seres racionais. É a partir desta identificação entre vontade e razão, assim como da definição de ser racional como fim em si mesmo que Kant introduz o conceito de pessoa. Este conceito é especificamente moral, isto é, ele aponta para a qualidade moral (racional) que o ser humano tem para se auto-determinar.

Com as várias formulações do imperativo categórico Kant reforça a tese de que a vontade é vontade (e/ou razão) não apenas porque está submetida à lei ou porque é motivada pela lei, mas sim porque ela é a criadora da lei que a si mesmo se dá. Dito em outras palavras, a vontade submete-se à lei sem nunca ser submissa, porque ela é autora, legisladora. Se até aqui permanecia por provar a existência do imperativo categórico, porque o dever ainda aparecia como algo externo, a partir do momento em que conceptualizamos o dever como tradução da autonomia do sujeito, i.e., como legislador universal, nos é possível pensar o imperativo categórico, i.e., um imperativo absolutamente incondicionado. Chegamos, assim, ao núcleo duro da argumentação kantiana: o princípio supremo da moralidade é a autonomia (da vontade). É este princípio que garante e sustenta a possibilidade do imperativo categórico; assim, é este princípio que estabelece o horizonte partilhado por todos os seres racionais (o “Reino dos Fins”), segundo o qual todos estão sistematicamente ligados, porque sujeitos a leis objetivas comuns que definem a relação entre cada um deles (como fim em si e nunca apenas como meio.

O conceito de autonomia torna-se aquele através do qual, a partir de Kant, se pensam a ideia e as práticas de liberdade. A liberdade que, enquanto ideia da razão não admite prova (empírica), manifesta-se existencialmente na deliberação e na ação dos seres humanos. A liberdade surge na prática sempre que o sujeito age de acordo com o dever (e não apenas em conformidade com o dever). Claro que Kant alerta para o facto de nunca podermos provar a moralidade de uma ação, porém, independentemente disso, é a partir desta ideia (de liberdade) e desta relação (entre liberdade, autonomia e razão) que se irá redefinir a moral dos séculos XVIII e XIX, assim como as teorias políticas.

Algumas implicações

A invenção da autonomia, ou melhor, a redefinição deste conceito no século XVIII é fruto de uma transmutação social, política e também cultural que ocorre gradativamente desde o século XVI. Se o século XVI é aquele onde a esfera da política se emancipa da esfera religiosa – com a invenção do Estado-nação via conceito de soberania –, é no século XVIII que ocorrem as revoluções que até hoje marcam a modernidade, enquanto projeto especificamente político (e moral). As Revoluções Americana e Francesa trazem, de formas distintas, novas reivindicações e possibilidades de construção da comunidade política, por exemplo, através da transformação do conceito de soberania que, se em Bodin e Hobbes era pensado como estando vinculado à figura de um monarca (absoluto), em Rousseau é deslocado para o novo agente político: o povo. Esta ênfase no potencial papel da soberania popular dá-se a partir da redefinição do indivíduo e da sua relação com o todo do qual faz parte. Em Rousseau, quer no Discurso sobre a Origem e Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, quer n’O Contrato Social, observamos a origem de uma reivindicação radical por reconhecimento da igualdade e liberdade entre os homens. A liberdade torna-se aquele aspecto ou qualidade que define a natureza humana. É este novo sentido de liberdade que vai ser explorado por Kant: a liberdade enquanto autonomia, autodeterminação, manifestação da sua vontade (razão prática).

Os ideais revolucionários de “igualdade, liberdade e fraternidade” propõem um novo imaginário colectivo; um imaginário onde a promessa da igualdade está ao alcance de todos os homens. É esse impulso, essa paixão desenfreada pela igualdade, que Tocqueville vai identificar na sua obra Democracia na América. A democracia, enquanto regime político mas também modo de vida, enraizada nesse novo ideal de soberania popular, afirma-se como inevitável. Este novo ideal assenta no postulado de que todos os indivíduos são (potencialmente) autónomos, livres, capazes de se autodeterminar, e portanto, capazes de assumir a responsabilidade pelas suas próprias escolhas. O conceito de autonomia adquire assim uma dimensão moral, fundamentada na razão e pensada a nível individual; e uma dimensão política, fundamentada numa razão “pública”, partilhada, e capaz de articular e reconstruir o corpo coletivo. Assim, a ideia de autonomia traduz-se na (nova) ideia de dignidade, esse conceito avançado por Kant que supõe que todos os seres racionais são fins em si mesmos, e torna-se ele mesmo critério a partir do qual a legitimidade da autoridade política passa a ser avaliada. Parece, por isso, haver uma relação entre a emergência do conceito de autonomia, na esfera moral, e o conceito de legitimidade (democrática) na esfera política.

É à luz deste princípio – da autonomia da vontade – que o problema do presente se coloca, e é esta abertura à problematização sobre a condição presente que define a modernidade. Esta é, aliás, a leitura que Foucault faz de Kant e do seu texto emblemático O que é o Iluminismo?. O Iluminismo não é uma época histórica, um momento no tempo, mas sim uma atitude face ao presente, à sua atualidade. Por isso, o texto de Kant, segundo Foucault, representa um convite à reflexão acerca do uso legítimo da razão; um uso que deriva da crítica. A crítica torna-se meio e método para a emancipação, para a autonomia, isto é, para a ‘saída da menoridade’. Segundo Foucault,

parece-me que se viu aparecer no texto de Kant a questão do presente como acontecimento filosófico ao qual pertence o filósofo que fala. Se se considera a filosofia como uma forma de prática discursiva que tem sua própria história, parece-me que com esse texto sobre a Aufklärung, vê-se a filosofia – e penso que não forço as coisas demais ao dizer que é a primeira vez – problematizar sua própria atualidade discursiva: atualidade que ela interroga como acontecimento, como um acontecimento do qual ela deve dizer o sentido, o valor, a singularidade filosófica e no qual ela tem que encontrar ao mesmo tempo sua própria razão de ser e o fundamento daquilo que ela diz. Deste modo, vê-se que, para o filósofo, colocar a questão de seu pertencimento a este presente, não será de forma alguma a questão de sua filiação a uma doutrina ou a uma tradição; não será mais simplesmente a questão de seu pertencimento a uma comunidade humana em geral, mas o seu pertencimento ao um certo “nós”, a um nós que se relacione com um conjunto cultural característico de sua própria atualidade. (Foucault 1997: 2)

O conceito de autonomia guia este processo e movimento de questionamento, problematização, reflexão e crítica. E será este o conceito o núcleo fundador a partir do qual se pensarão as aspirações políticas e sociais mais igualitárias. Porém, se o século XVIII e XIX foi marcado pela crença de uma relação entre autonomia, razão e progresso, tendo a história como grande palco, o século XX vai obrigar a repensar o conteúdo e significado desses conceitos.

Autonomia hoje – sentidos e tradições

O problema para um leitor do século XXI não reside tanto no facto de Kant conceber a vontade apenas como razão, mas no passo anterior a esse, a saber, na postulação da própria razão. Ao longo do texto, Kant trabalha com a suposição de que existe algo cuja existência tem um valor absoluto como fim em si mesmo (Costa 2016: 544).

O século XX foi palco de barbáries sem precedentes – guerras mundiais, genocídios, totalitarismo, fascismo, entre outros – porém também foi o século que tentou responder à barbárie por meio de um compromisso com um projeto democrático-liberal enraizado nos postulados de dignidade humana, direitos e liberdades fundamentais e igualdade. Com efeito, poderíamos dizer que a consolidação das democracias ocidentais no século XX se dá através da afirmação da superioridade do valor de autonomia individual, simultaneamente pensado na sua vertente ética e política. Esta afirmação supõe um reconhecimento e aceitação generalizados de que os seres humanos, em virtude da sua condição humana, são dignos e merecedores de respeito e igual consideração.

Esse compromisso com o ideal de autonomia individual revela, porém, a sua natureza frágil e conturbada. Afinal, a Segunda Guerra Mundial mostrou que a moral – no sentido kantiano de reconhecimento e pertença a um reino dos fins – não é um facto mas apenas um desejo ou esperança. Dito por outras palavras, a Segunda Guerra Mundial mostrou que a moral não é necessária. Mas será ela possível?

O período pós-guerra é marcado por um desencanto generalizado. A teoria crítica, representada pelos seus fundadores Max Horkheimer e Theodor Adorno, problematiza e expõe as feridas deixadas não só nos corpos mas na possibilidade do próprio pensamento e sua (auto)justificação. Na obra emblemática Dialética do Esclarecimento, Horkheimer e Adorno denunciam as tendências regressivas da razão (associada à moral) e com isso obrigam a repensar as condições de possibilidade da autonomia. A razão, ao contrário do que Kant pensava (por exemplo, em Ideia de uma História Universal com um propósito Cosmopolita ), não garante, por si só, a emancipação dos seres humanos no sentido de uma autonomia crescente, pensada a nível individual e coletivo. A razão pode, e foi efetivamente, instrumentalizada, convertida num simples meio de dominação, colocando em cheque todas as suas promessas emancipatórias originais. Essa instrumentalização observa-se não só na proliferação de técnicas de vigilância, controle e disciplina (para adoptar a terminologia foucaultiana), mas também na redução da moral (enquanto conjunto de valores) a mera ideologia. O projeto de uma moral com pretensões universais sucumbiu ao domínio, violência e à força. Neste sentido, a contribuição de Adorno é importante: o autor demonstra com clareza como o discurso metafísico se tornou absolutamente incapaz de dar conta da existência contemporânea. Nem a formalidade kantiana nem a dialética hegeliana ou marxista são capazes de responder aos desafios lançados no século XX. O que fazer? É possível (ou desejável) manter o ideal de autonomia? É possível (ou desejável) manter o projeto do Esclarecimento? Responderei a esta questão dialogando com Adorno e Foucault, por um lado, e com John Rawls, por outro.

Para Adorno é impossível escapar à dinâmica de dominação, seja ela entendida do ponto de vista natural ou social. A “indústria cultural” é um exemplo desta dinâmica. Porém, resta uma esperança, que pode ser encontrada na arte. A arte, de acordo com o autor, representa a possibilidade de autonomia na medida em que, por um lado, ela não pode simplesmente ser reduzida a uma função ou meio; por outro lado, a arte exemplifica um outro tipo de racionalidade, com conteúdo cognitivo, que não é esgotada na conceptualização “científica” de razão. Neste sentido, a teoria da arte adorniana torna-se o espaço onde é possível resgatar os ideais emancipatórios e as práticas de autonomia. A autonomia expressa na arte manifesta-se no ato de resistência, crítica e denúncia do que está errado no mundo. Porém a arte é incapaz de fornecer um modelo de ação prescritivo. A sua tarefa reside principalmente na capacidade e potencial de contribuir para a “desfetichização” da consciência.

Podemos identificar em Foucault uma continuidade com o projeto do Iluminismo no sentido em que o autor sublinha a importância da crítica na tarefa mais vasta da emancipação (Costa 2011: 127). No entanto, Foucault destoa dos autores modernos, já que ele insere uma mudança metodológica significativa. Para o autor, a questão não se coloca em termos de “o quê” ou “quem” mas antes em termos de “como”. Assim, a autonomia não é pensada a partir de um sujeito previamente existente, como se tivesse uma “essência”, mas sim a partir da problematização dos processos de constituição de subjetividade. Diz o autor que o termo sujeito pode ser entendido como sujeitado, isto é, dependente, submisso, ou como produto de uma construção social, reflexo de técnicas, disciplinas e práticas institucionalizadas. Para Foucault, aquele indivíduo (autónomo) projetado por Kant, pensado a partir da razão, é uma invenção da modernidade: o indivíduo é sempre produto de uma constelação de forças, técnicas, de múltiplas racionalidades que têm como objetivo a sujeição, ou subjetificação; o individuo não é um átomo, um ponto de partida pré-existente, mas sim um efeito de relações de poder. Mas será que isso significa que não podemos falar de autonomia em Foucault? Não. Tal como Kant e Adorno, a crítica vai desempenhar um papel fundamental em Foucault. É através da crítica que se configuram novas possibilidades para uma vida autónoma. O conceito (e prática) de autonomia em Foucault não é pensado a partir de uma moral universal (Kant) nem de uma ética da responsabilidade (Adorno) mas sim a partir de uma ética de desconforto, uma ética pessoal que no seu centro tem uma prática criadora.

As abordagens de Adorno e Foucault permitem imaginar novos sentidos de autonomia, sobretudo a partir de uma perspectiva ética, isto é, pensando a liberdade através de uma prática (ou conjunto de práticas) específica(s). Mas o que dizer acerca da relação entre autonomia (ética) e autonomia (política)? Se a moral deixou de ser necessária é possível salvaguardar o conceito de autonomia, a partir da esfera política?

Os processos de democratização na segunda metade do século XX mostram que sim. A partir do momento em que a ética se torna questão pessoal, privada, sem pretensões de universalidade ou reconhecimento transcultural, é preciso repensar os fundamentos da comunidade política para que atrocidades e atos bárbaros não voltem a acontecer. O discurso sobre a ética dá lugar ao discurso sobre a justiça. Como garantir uma sociedade bem ordenada? Abraçar os ideais democráticos passa por adoptar a grelha liberal que, de alguma forma, compensa pela “suspensão” da grelha moral. Na sua base temos a defesa pela autonomia individual, direitos e liberdades fundamentais, de entre as quais a liberdade de consciência e de associação se destacam, o reconhecimento da dignidade humana (e compromisso com a narrativa transnacional dos discursos humanos) e a defesa (pelo menos por princípio) de uma igualdade radical entre os seres humanos enquanto membros de uma comunidade política, quer pelo igual tratamento perante as leis, quer pelo acesso a cargos e oportunidades. John Rawls é o autor que mais bem exemplifica este deslocamento, e com ele, a reinvenção da filosofia política; mas mais que isso, ao propor os princípios de justiça reguladores da estrutura básica da sociedade, em Uma Teoria da Justiça, Rawls permite articular as reivindicações liberais com as reivindicações distributivas. Nesta articulação emerge, com toda a clareza, o princípio que subjaz a toda a construção teórica e que traduz o imaginário coletivo a que nós, ocidentais, (ainda) pertencemos: o princípio da autonomia. Este continua a ser aquele princípio regulador que, por um lado, orienta a redefinição e ajuste de teorias democráticas contemporâneas e, por outro, propõe e imagina uma harmonia entre várias concepções de bem (e de vida ética).

Bibliografia

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Schneewind, J. B. (1998), The Invention of Autonomy – A History of Modern Moral Philosophy, Cambridge University Press, Cambridge.


Outros artigos

Autarquia; Indivíduo; Liberdade


Como citar este artigo

Costa, M. N. “Autonomia”. Dicionário de Filosofia Moral e Política (2018), 2.ª série, coord. António Marques e André Santos Campos. Lisboa: Instituto de Filosofia da Nova, URL: <http://www.dicionariofmp-ifilnova.pt/autonomia>.


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DOI: http://doi.org/10.34619/xz7y-9867


Publicado em: 1 de Outubro de 2018


Marta Nunes da Costa

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

<nunesdacosta77@gmail.com>